Histórias do punk em Portugal através de capas de discos e bandas desenhadas
Dois livros em um, ou seja, um split-book, bem à punk! Em 2017, ano em que se “celebram” os 40 anos do punk em Portugal, a Chili Com Carne, em parceria com a Thisco, edita o (duplo) livro sobre este fenómeno: “Corta-e-Cola: Discos e Histórias do Punk em Portugal” (1978-1998) de Afonso Cortez e “Punk Comix: Banda Desenhada e Punk em Portugal” de Marcos Farrajota.
Escrito a partir de um levantamento exaustivo de fanzines, discos e demo-tapes, ao longo de 256 páginas, os autores dissecam todo esse material para tentarem perceber como através de uma ética – do-it-yourself – se conseguiu criar uma (falta de) estética caótica e incoerente que hoje se identifica como punk.
Através da produção gráfica desse movimento se fixaram inúmeras estórias – até agora por contar – de anarquia e violência; de activismo político, manifestações e boicotes; de pirataria de discos e ocupação de casas; de lutas pelos direitos dos animais; de noites de copos, drogas e concertos…
Corta-e-Cola / Punk Comix é ilustrado com centenas de imagens, desde reproduções de capas de discos a páginas de fanzines, cartazes, vinhetas e páginas de BD, flyers e outro material raramente visto. E porque punk também é música, o livro vêm acompanhado por um CD-compilação com 12 bandas de punk, rock ou música experimental actuais como Albert Fish, Dr. Frankenstein, The Dirty Coal Train, Presidente Drogado, Putan Club, Estilhaços Cinemáticos…
As bandas ofereceram os temas, todos eles inéditos, sobre BD na forma mais abrangente possível, sobre personagens (Batman, Corto Maltese), séries (O Filme da Minha Vida), autores (Vilhena, Johnny Ryan) ou livros (V de Vingança, Caminhando Com Samuel). Alguns mais óbvios que outros mas tendo como resultado uma rica mistura de sons que vão desde o recital musicado ao Crust mais barulhento.
Histórias do punk em Portugal contadas em quadradinhos
“O punk não foi um movimento contínuo, mas fragmentado, esporádico, dissolvido entre outras propostas, em permanente mutação, como aliás qualquer movimento juvenil”, afirma Afonso Cortez na introdução do livro.
A análise é feita a partir das capas de discos, “porque impondo essa obrigação de olhar para as capas se rompe, logo à partida, com a ideia generalizada do punk como mero estilo musical. A capa faz parte do manifesto. Embora, muitas vezes não manifeste nada”, escreveu.
Depois de mais de 150 páginas, Afonso Cortez conclui que ao longo daqueles vinte anos (1978-1998) o grafismo foi entendido “apenas como um pormenor. E que a falta de cultura visual, ou mesmo de estudos, se reflete de forma catastrófica na falta de qualidade do que é produzido”.
Embora os Faíscas e os Minas & Armadilhas sejam referenciados como os iniciadores do punk na música portuguesa, Afonso Cortez assume “Há que violentar o sistema”, de 1978, dos Aqui d’el Rock, como o primeiro disco punk português.
A partir daí, faz um levantamento dos discos editados, comenta a vertente gráfica das capas, mapeia os locais de concertos e a crítica na imprensa e complementa com testemunhos de músicos recolhidos pelo próprio.
Mata-Ratos, Crise Total, Kus de Judas, Cães Vadios, Censurados, Nestrum, Desarranjo Cerebral, Renegados de Boliqueime, Vómito, Peste & Sida, X-Acto são algumas das bandas referidas no livro, repartidas pelo autor por quatro momentos, dos primórdios em finais de 1970 até ao punk/hardcore dos anos 1990.
Já sobre a BD, Marcos Farrajota explica o mote do livro: “Serve como uma base de referência para quem quiser pegar na BD para relacioná-la com o punk, subculturas urbanas, música, cultura DIY, artes gráficas e editoriais”.
Recusando o punk que serve de “modelito de tribo urbana”, Marcos Farrajota recua a finais dos anos 1970 para encontrar as primeiras referências ao punk na BD portuguesa. Surgem na revista Tintin, assinadas por Fernando Relvas e Pedro Morais, “mas são situações em que os punks são apenas paisagem urbana”.
Marcos Farrajota faz ainda referência à atitude “militante e amadora” de publicação, da auto-edição, dos fanzines, das coletâneas e da tecnologia da fotocópia e enumera vários autores que desenharam sobre o punk, como Diniz Conefrey e João Mascarenhas. O autor questiona ainda a forma quase sempre estereotipada de representar um punk – “é um figurante com uma crista, ponto final” – e a sexualidade: “A representação da homossexualidade ou de outras sexualidades conta-se pelos dedos da mão na BD portuguesa”.
Quanto à ideia de um livro-duplo sobre punk, Marcos Farrajota afirma que é somente “um modus operandi punk que fortalece o espírito de comunidade e de entre-ajuda, opondo as ideias tontas de competição selvagem que dominam todos os aspetos das nossas vidas”.