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Camané: “o fado é uma maneira de estar na vida”

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Camané: “o fado é uma maneira de estar na vida”

by Goreti Teixeira

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Uma voz penetrante. Um olhar tímido. Uma presença segura. Assim podemos caracterizar Camané. Um fadista que sente o fado de uma forma muito particular. Uma mistura de sentimentos que lhe invadem a alma e fazem brotar cá para fora todo o seu talento.

Como contou há alguns anos em entrevistas à imprensa, – nome artístico para Carlos Manuel Moutinho Paiva dos Santos – teve o seu despertar para a música durante a infância, quando aproveitando o tempo que passou em casa a recuperar de uma doença infantil, começou a vasculhar os discos do pai e a interiorizar ritmos de Frank Sinatra, Charles Aznavour e dos Beatles, deixando-se a pouco e pouco fascinar por fadistas como Amália Rodrigues, Maria Teresa de Noronha e Alfredo Marceneiro.

Neste post, sacudo a poeira a uma entrevista antiga que tive a honra de fazer a pela altura em que lançou o seu álbum “Pelo Dia Dentro”, em 2001. Uma conversa intimista sobre a carreira e vida do artista, que partilha como é viver a fazer fado.

À conversa com Camané

Goreti Teixeira (GT): Quais são os poetas que mais gosta de cantar?

Camané (C): Manuela de Freitas, João Monge, José Mário Branco, Aldina Duarte, Amélia Muge, José Luis Porto são pessoas que têm escrito para mim e de quem gosto muito. Além deles tenho alguns poetas clássicos como Fernando Pessoa, alguma poesia popular deste poeta que engrandece o meu trabalho. No entanto, é necessário escolher o poema correcto porque não é fácil cantar Pessoa. Tem de ser um poema bem escolhido para não o estragar.

GT: Mas existe alguém que gostasse que escrevesse para si e ainda não o tenha feito?

C: Existem realmente muitas pessoas com quem gostava de trabalhar, mas ainda não surgiu a oportunidade. Geralmente, quando começo a fazer um disco as coisas vão surgindo, se fizer sentido falar com essa pessoa falo, porque quando peço qualquer coisa quero ter a certeza de que a vou fazer.

GT: E você aventura na composição?

Não, nem em letras nem em músicas. Sou só interprete.

GT: Existem pessoas que não gostam de fado, nomeadamente a geração mais nova. Para alguém que pensa desta maneira como a ajudaria a tentar conhecer melhor o fado?

C: Muitas das pessoas que não gostam de fado é porque não ouviram. A única coisa que posso fazer é fazer o meu trabalho, porque o que as pessoas sentem hoje é aquilo que sentiam há 50 anos atrás, apesar dos factos da vida serem diferentes e isso tem de estar presente na linguagem do fado. O fado é uma coisa para a vida inteira, mas acho que a pouco e pouco as pessoas vão-se apercebendo disso. Tenho reparado que cada vez mais gente nova ouve a minha música e acho que isso vai passando de boca em boca.

GT: Na sua opinião o fado ainda continua a ser tratado como uma música de segunda categoria?

C: No meu caso sinto-me bem tratado, no entanto, na altura em que comecei a cantar, com 18 anos, as pessoas da minha idade gozavam comigo. O fado naquela altura não era politicamente correcto. Lembro-me que morava em Oeiras e quando ia para as casas de fado tinha de apanhar o comboia e até à estação era gozado porque andava de fatinho. Era complicado, mas com o passar do tempo as coisas foram melhorando. Um disco de fado não é tratado como qualquer outro género musical. O facto de ter ganho prémios que não são normais os fadistas ganharem, como um Globo de Ouro, um Bordalo Pinheiro e um Prémio Blitz mostram como as coisas estão a mudar.

GT: As rádios ajudam na divulgação da música portuguesa?

C: Acho que não. As rádios locais ainda continuam a passar música portuguesa, mas as nacionais não. Com a globalização é complicado e até mesmo a identidade cultural de um país pode estar em perigo. Penso que as pessoas deviam ter atenção a isso.

   

GT: Como é que define o fado?

C: É uma maneira de estar na vida que depois se transforma nesta forma de expressão. É complicado definir qualquer tipo de arte.

GT: Qualquer pessoa pode ser fadista?

C: Claro que não. Aprende-se mas não se ensina. Aprende-se porque a pessoa tem esse dom, esse talento e consegue. É como um jogador de futebol quando começa a dar os primeiros toques. Se tiver muito talento aprende, mas se isso não acontecer pode ser ensinado mas nunca será bom. Com o fado acontece a mesma coisa.

GT: Como é que surgiu esta sua paixão pela música?

C: Quando tinha sete anos fiquei doente e tive de passar 15 dias em casa e como os meus pais tinham uma colecção de discos de fado ouvi-os compulsivamente. Até nem tinha jeito para cantar, mas passado uns dias dei por mim a cantar aquelas músicas. Quando tinha 10 anos fui com os meus pais a uma casa de fado e cantei. As pessoas acharam muita graça e a partir dai de vez enquando canta aos fins-de-semana. Participei depois na Grande Noite do Fado, em 1979 e ganhei. Nessa altura ainda cheguei a gravar quatro singles, um deles produzido pelo António Chainho. Depois até aos 18 anos parei de cantar.

GT: Se não tivesse seguido esta carreira o que teria sido o ?

C: Já pensei várias vezes nisso, mas não faço a mínima ideia.

GT: Que sensações é que o invadem quando está num palco rodeado de uma grande plateia?

C: Ao princípio tenho imenso medo, mas ao mesmo tempo sinto uma enorme felicidade. Como sou tímido tenho muito medo, mas quando estou a cantar perco essa timidez e ter humildade suficiente para dar qualquer coisa às pessoas. Às vezes consigo ouvir o silêncio quando estou a cantar.

GT: Pelo facto de ser uma pessoa tímida é difícil lidar com as pessoas que o abordam na rua?

C: Não gosto de trabalhar sob rejeição. As pessoas gostam de mim e isso é bom, mas não deixaria de fazer o que faço se fosse menos conhecido. As pessoas são muito simpáticas para mim e têm respeito por mim. Penso que também tem a ver com a forma como estou nas coisas.

GT: Concorda quando se diz que o fado é saudade e tristeza?

C: O samba é tão triste como o fado, o problema é que as pessoas nunca se apercebem das letras. O fado é a nossa forma de expressar essa tristeza ou a alegria. O fado fala dos sentimentos de uma forma profunda, a tristeza é profunda, alegria é profunda. Não se pode chegar à alegria sem passar pela tristeza. Há toda essa magia no fado. Essa autenticidade que faz parte da vida e é esta a nossa forma de expressar os sentimentos.

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