Rage Against The Machine: 35 pancadas em cheio na cabeça
No outro dia fui contra um poste. Era de noite, estava a despedir-me do meu grande amigo José Manuel Simões e decidi continuar a falar enquanto olhava para trás e caminhava na direcção oposta, e fui contra um poste no meio da calçada. Bati em cheio com a metade direita da cara. Doeu como o caraças, todavia sorri e continuei a caminhar. Mas foi o suficiente para me recordar como sou estúpido e distraído. E nessa altura lembrei-me dos Rage Against The Machine!
Entrei no carro cinco minutos depois do incidente com o poste e meti os Rage Against The Machine a tocar, enquanto circulava na VCI do Porto de regresso a casa. A meio da música Renegades of Funk ouvi a mensagem:
“From a different solar system many many galaxies away
We are the force of another creation
A new musical revelation
And we’re on this musical mission to help the others listen
And groove from land to land singin’ electronic chants like
Zulu nation
Revelations
Destroy our nations
Destroy our nations”
in “Renegades of Funk”
Para uma banda que debitou tantas palavras é irónico que seja através de uma versão e não de um tema original dos Rage Against The Machine que encontro algumas das frases simbólicas mais apropriadas para descrever o seu objectivo artístico. A letra original de Afrika Bambaataa é um hino revolucionário espiritual e libertador para quem decifra a mensagem codificada. E pela voz de Zack de la Rocha ganha um duplo sentido, pois descreve também como a missão musical dos Rage Against The Machine é ajudar os outros a ouvirem hinos revolucionários por todo o Mundo.
É isso, entendi, acho que percebi tudo agora mesmo: a missão dos Rage Against The Machine não era mudar o Mundo, mas sim estimular dentro de cada pessoa uma postura realista, informada, atenta e, se possível, estimular a acção concreta e agressiva contra o sistema. As suas músicas são notoriamente anti-governo à semelhança de muitas outros artistas influenciados pela cultura hippie dos anos 70. Todos os países têm os seus cantores que difundem temas revolucionários influenciados por essa cultura, sejam eles Bob Dylan ou Bruce Springsteen, Zeca Afonso ou Sérgio Godinho, Caetano Veloso ou Chico Buarque. Contudo, os Rage Against The Machine pregam uma mensagem de acção violenta contra o sistema. Mas é apenas música, não é incitação à colocação de bombas ou coisas semelhantes… Por ser tão enérgica e brutal, embora não incapacitante, achei por bem a metáfora com o poste! Mais à frente, tudo ficou mais claro:
“We’re the renegades
We’re the people
With our own philosophies
We change the course of history
Everyday people like you and me
C’mon”
in “Renegades of Funk”
Uma banda na frincha da oportunidade geracional
Há mais de 20 anos que ouço os 5 discos dos Rage Against The Machine e nunca tinha pensado nestes termos. Desde o primeiro álbum homónimo lançado em 1992 que sou fã do grupo. Eles surgiram numa época ideal: a década de 90 estava a aceitar novas mentalidades em oposição à década de 80, o hip-hop ainda não dominava tudo e mais alguma coisa, a indústria musical estava disposta a arriscar em formatos diferentes. Nesta sequência de eventos, a banda fazia uma fusão entre rap e metal, algo que não era original, mas evidenciavam uma identidade própria muito forte, que impactou o mercado musical. Foi sem surpresas que o grupo cativou milhões de seguidores com o primeiro disco. Killing In The Name foi um hit global, tornando os Rage Against The Machine na banda de cariz político e intervencionista mais bem sucedida da sua geração.
Cada vez que a sociedade adopta novas posturas ou muda de valores (como a aceitação do aborto ou do casamento homossexual, por exemplo), existem limites que demoram algum tempo a serem definidos. Apenas isso explica que em determinadas fases da cultura popular sejam realizados passos de ruptura que não são sequer perceptíveis por quem domina o status quo.
Foi nessa frincha de oportunidade geracional que os Rage Against The Machine surgiram, expondo claramente com letras directas e ostensivas tudo o que lhes ia na alma sobre a sociedade e os valores dominantes que justificam guerras mundiais e manipulação de massas. Uma música como Bullet In The Head se calhar nos dias de hoje era… censurada. Ou talvez não, mas o que interessa é que na altura era muito contrastante com outros hits mundiais. E fazia sentido!
Quer assistir à próxima digressão dos Rage Against The Machine? Clique neste LINK para saber quando é que a banda regressa aos palcos!
4 Músicos excepcionais, 2 talentos raros
Nunca é demais referir que os 4 elementos dos Rage Against The Machine são músicos excepcionais. E tenho tendência para admirar quem sabe tocar música de forma imaculada, seja lá de que género for o artista. Mas, apesar de apeciar o baixista Tim Commerford e o baterista Brad Wilk, que fazem uma secção rítmica muito forte e dinâmica, quem realmente admiro é o guitarrista Tom Morello e o vocalista Zack de la Rocha.
O primeiro porque simplesmente desbunda (e desbunda muito) na guitarra: vi com os meus próprios olhos como domina o instrumento e, sobretudo, como coloca todo o seu talento ao serviço de cada canção. Não é um Joe Satriani, nem sequer um virtuoso desse género, mas para mim revela muito mais sabedoria e inteligência do que a grande maioria dos guitarristas mais famosos do Mundo. Claro que Tom Morello ouviu Jimmy Page durante muitas horas, mas quem o pode censurar por fazer novos riff zeppelianos a cada nova canção? São sempre muito bons!
Contudo, nem tudo é harmonia e rock poderoso no som delicioso da guitarra de Tom Morello. Ele é motivado mais pelos fins do que pelos meios, por isso, existem solos cacofónicos e inenarráveis, e outros milhares de sons que eu julgava serem impossíveis de extrair de uma guitarra. A questão nem é se ele toca bem ou não, mas sim: como é que ele faz aquilo? Em cada disco dos Rage Against The Machine, o livrinho que acompanha o álbum tem sempre uma referência: “All sounds are made by vocals, guitar, bass and drums.” Não acredito que esta frase alguma vez tenha sido pensada para elucidar os ouvintes sobre o que fazem o baixista, baterista e vocalista dos Rage Against The Machine. Essa declaração serve apenas e exclusivamente para que todos percebam que aqueles sons alucinantes que estão nas músicas são feitos sobretudo pela guitarra de Tom Morello, que, repetindo, desbunda, desbunda muito!
Na primeira visita dos Rage Against The Machine a Portugal, como cabeças de cartaz do Festival Super Bock Super Rock de 1997, vi pela primeira vez como Tom Morello tem um domínio total da guitarra, criando sons de maneira totalmente inóspita e inesperada. Desde espetar o jack do cabo do amplificador directamente nas cordas, ou fazer na perfeição um solo enquanto batia furiosamente no instrumento sem tocar qualquer acorde, Tom Morello exibiu um repertório digno de mágicos. E fazia tudo isto com uma simplicidade e humildade notórias!
Horas antes, cruzei-me com o guitarrista dos Rage Against The Machine nos bastidores do Festival de Música. Com a preciosa ajuda do meu grande amigo André Hollanda, fundador e baterista dos ZEN (que actuaram nesse mesmo dia), consegui entrar para a zona onde os artistas relaxam antes de cada espectáculo. Mas não foi nesse local que vi Tom Morello em carne e osso. Apenas quando já vinha a sair da zona restrita eu e o meu amigo reparamos numa pessoa rodeada de cabos e guitarras numa rampa de acesso à parte de trás do palco principal. Era Tom Morello a carregar o material para o concerto que ia realizar dentro de algumas horas. Trocamos olhares, sorrimos e continuamos o caminho. Fiquei espantado que um dos deuses mundiais da guitarra estivesse ali a transportar o equipamento. E passei a admirá-lo ainda mais.
Além de tudo isto, Tom Morello é uma personagem da cultura popular que usa a sua fama para acções concretas, sendo aliado natural de figuras como Beastie Boys, Bruce Springsteen, Jack Johnson, Eddie Vedder e muitos outros. Neste particular partilha com Zack de la Rocha uma vivência que norteou as suas personalidades artísticas. Tom Morello era também um dos melhores amigos de Chris Cornell, numa relação que cresceu quando fundaram, juntamente com Tim Commerford e Brad Wilk, o super-grupo Audioslave, após o final das atividades dos Rage Against The Machine.
Zacarias Manuel de la Rocha: letras para pensar e estimular acções
Também admiro muito o vocalista da banda (cujo nome verdadeiro é Zacarias Manuel de la Rocha) porque apesar de ser um bocado limitado vocalmente considero que usa de forma excepcional as poucas qualidades que possui para criar música intensa. Não tem a amplitude de Mike Patton, nem o poder da voz de Phil Anselmo (Pantera) ou Max Cavalera (Sepultura). Todavia é um vocalista e letrista memorável, que exibe de alma aberta e de forma frontal e directa todos os seus predicados, pensamentos e adjectivos. Até ao último disco do grupo só existiam 3 maneiras que Zack de la Rocha utilizava para ilustrar as músicas: ou sussurrava, ou rappava, ou berrava. Ele não cantava propriamente melodias para trautearmos, mas o que faz é muito eficaz e musicalmente perfeito para a sonoridade do grupo de Wake Up e Freedom. Na verdade, as letras e a voz de Zack de la Rocha são a combinação ideal para a abordagem dos outros elementos. O resultado sonoro é tão coeso e forte, que parece ser maior do que a soma das partes.
Um facto notório durante a existência da banda (descontando o regresso temporário do grupo aos concertos entre 2007 e 2010) é que os Rage Against The Machine foram uma banda irregular que viveu entre contradições. E não somos todos assim? Contudo, num grupo com ambições artísticas e sociais, editar apenas 3 álbuns originais (Rage Against The Machine, Evil Empire e The Battle of Los Angeles), 1 disco de versões (Renegades) e outro ao vivo (Live at the Grand Olympic Auditorium) foi manifestamente escasso.
Infelizmente, o vocalista dos Rage Against The Machine colocou um ponto final na curta carreira do grupo ao abandonar o projecto em 2000. Após 8 anos de sucesso artístico e comercial, os Rage Against The Machine terminaram de forma surpreendente. A maioria das informações credíveis aponta que a responsabilidade maior cabe a Zack de la Rocha, que não queria lançar o disco Renegades. Por sua vez, os outros elementos do grupo sempre lamentaram os grandes hiatos de tempo entre cada disco, impondo de certa forma a edição deste álbum de versões, enquanto esperavam pelo vocalista para criarem um novo disco de originais. Seja como for, tais desacordos impediram o grupo de lançarem novas músicas até hoje.
É o dinheiro estúpido, é o dinheiro!
No folheto do último disco de estúdio dos Rage Against The Machine a banda ensina a qualquer pessoa uma forma de protesto que é, em simultâneo, um crime federal nos EUA… e é um acto pelo qual nunca ninguém será apanhado. No folheto eles impelem os fãs a escreverem mensagens em notas de dólar. Qualquer tipo de mensagem serve, de preferência uma mensagem que ajude quem a vai ler. Não sei quem teve a ideia, mas é brilhante que o simbolismo gráfico final dos Rage Against The Machine seja isto. O que eles querem dizer é que o sistema é… o dinheiro (sempre foi o dinheiro).
O sistema não é o Obama, o partido grego Syriza, Fidel Castro, a União Europeia, ou Lula da Silva e o seu PT. Inseridas nas músicas dos Rage Against The Machine estão muitas reflexões e denúncias sobre sistemas políticos, conspirações mundiais, lado a lado com críticas ferozes às classes dominantes. Mas será que as lutas encetadas pela banda, como por exemplo os casos de Leonard Peltier ou Mumia Abu-Jamal, são relevantes para a minha pessoa? Claro que são interessantes de conhecer e acompanhar, mas eu, como a maioria dos mortais, preocupo-me muito mais com o meu quotidiano e o que se passa à minha volta. Então por que razão as histórias particulares contadas pelos Rage Against The Machine podem ser úteis para problemas totalmente diferentes e generalistas?
Julgo que, como a grande maioria das pessoas, naturalmente também acho que os Governos limitam a minha vida. Considero também que os impostos e sistemas que controlam os meus movimentos desde o nascimento até à morte, e que me prejudicam diariamente através da corrupção e manipulação da verdade, podiam ser menos impactantes para todas as pessoas. Mas os sistemas são os mesmos em todo o lado e dominam todos os países do Mundo, sendo obviamente manipulados pela política e lobbies, que geram a corrupção e falta de liberdade e respeito pelos valores humanos básicos. Isto sem falar ainda do desfalque das riquezas das nações. Sim, acredito que podemos viver num Mundo melhor e que cada pessoa na sua acção individual pode ajudar nesse desígnio. Mas não vivo em ilusão. Não sou um pessimista, mas sim, como dizia José Saramago, um “realista informado”.
Mas para que servem então então as músicas dos Rage Against The Machine? Servem para estimular mais “realistas informados”! Estas canções abrem pensamentos, denunciam imoralidades comuns a todo o universo e, por essa razão, eles se tornaram na banda de culto que conhecemos. Acima de tudo em cada música, álbum ou concerto, os Rage Against The Machine criaram arte de acordo com os seus valores e convicções, apelando a uma liberdade individual de pensamento realista.
A ética dos Rage Against The Machine
Raras vezes o nome de uma banda é tão directo sobre qual a mensagem da mesma. Mas Rage Against The Machine não deixa dúvidas: é música destinada a amplificar sentimentos de raiva contra o sistema. De preferência, sentimentos que sejam transformados em acções.
Devido às fortes posições activistas e políticas manifestadas em todos os seus actos e canções, os Rage Against The Machine sempre foram visados por críticos, que os acusam de serem pouco éticos, hipócritas e não-filantropos, até chegam a dizer que a banda gastava muito dinheiro para fazer telediscos em vez de, por exemplo, alimentarem uma aldeia na Somália com esse mesmo investimento. A acusação principal e mais grave no entanto foi que a banda é uma fantochada, porque sempre editou pela empresa multinacional Sony. Julgo que nem vale a pena rebater muitas destas ideias, nem mencionar que os Rage Against The Machine participaram inúmeras vezes em concertos gratuitos e acções concretas de activismo na sociedade norte-americana e internacional, nem que grande parte dos lucros obtidos pelo grupo foram sendo doados a instituições de caridade, nem sequer que todo o merchandising dos Rage Against The Machine sempre foi manufacturado recorrendo a empresas de cariz social, estimulando o emprego nos EUA.
Tom Morello tem uma resposta para estas pessoas, que prazerosamente transcrevo agora: “Quando vivemos numa sociedade capitalista, a moeda de disseminação da informação circula pelos canais capitalistas. Será que Noam Chomsky colocaria objecções sobre a venda dos seus livros na Barnes & Noble? Não, porque é nesse local que as pessoas compram livros. Não estamos interessado em pregar apenas para os convertidos. É ótimo tocar para casas abandonadas geridas por anarquistas, mas também é ótimo ter a capacidade de alcançar as pessoas com uma mensagem revolucionária, estejam eles em Granada Hills ou Estugarda.”
Voltando ao poste e às pancadas na cabeça…
Já há alguns dias que andava à procura de uma metáfora para descrever a mensagem desta grande banda de uma maneira que nunca tivesse sido escrita e fizesse sentido para mim. Nunca imaginei que tinha de levar com um poste na cara para perceber que as músicas dos Rage Against The Machine são como… postes parados no meio das calçadas das nossas vidas mundanas. No total são apenas 35 músicas originais, onde vamos batendo com a cabeça cada vez que as ouvimos! Mas a música dos Rage Against The Machine é acima de tudo um estado de alma, contra o adormecimento geral e pessoal, são actos brutais e agressivos para estimular acções e reflexões. São como alertas brutais de como somos estúpidos e distraídos com os nossos semelhantes e como o sistema nos controla muitas vezes a alma, coração e espírito.
Neste cocktail molotov de punk, hip-hop, funk, rock e metal está implícito que a música da banda é apenas um complemento da personalidade e actividades dos seus elementos, reivindicando uma verdade revolcionária que marcou uma enorme legião de fãs em todo o Mundo. E marcou-me a mim também.
Cada vez que ouço uma música ou álbum, ou tenho algum tipo de contacto com a arte dos Rage Against The Machine, é como levar novamente com o poste na cabeça, a relembrar-me de forma estrondosa: “Acorda estúpido, estás distraído, vais sofrer consequências”. Assim aconteceu mais uma vez no final da viagem depois de parar o carro e ouvir umas tantas músicas dos Rage Against The Machine. Esse momento de clareza doeu, mas sorri e continuei a caminhar.
Obrigado por partilhar. Curto a banda Rage Against the Machine, e pude conhecer mais sobre.
Grato e parabens pelo blog.
Muito obrigado eu por ler e pelos parabéns, caro Carlos Alberto! Os Rage são uma força viva, e vão continuar a ser! Grande abraço