Sara Tavares: temos que tentar tirar partido da marcha
Sara estava a viver uma certa assunção da sua condição de cantora, mais madura e encontrada, mas ainda assim simples, assumidamente despida, reconciliada com a sua faceta de escritora de canções que buscam a beleza humana e que revelam o seu carácter límpido. Contava-me histórias, espontâneas e íntimas, e confidenciava-me que andava a tentar descobrir-se, num processo de introspecção e de busca.
Via nela a nostalgia e uma sede de liberdade porque “acredito que a única forma de criar sem fronteiras tem de partir de um princípio onde não pode haver lugar para complexos ou preconceitos”. Percebi uma paixão pela essência e uma admiração pelo som das coisas mais enraizadas, pelas vozes que são luzes, tipo cometas, que passam e que ficam dentro de nós.
De repente parecíamos envoltos num imaginário infantil, borboletas em jardins encantados, saltando as pedrinhas do caminho, o riacho, criando puzzles que desvendam a forma de uma só imagem, ambos tomando atalhos sem nunca perder de vista o oásis. Chegou nesse momento o fotógrafo, perturbador e inquieto, acordando-nos do que parecia vir a ser um sonho lindo.
É então que me olha mais dentro dos olhos, dentro de mim, a amiga ao lado com ar de ciúme, o retratista sem jeito ao exclamar alto que “até parecia que se estavam a passar um com o outro”. Ela volta-me a olhar dentro e exclama: “temos que tentar tirar partido da marcha, compreendendo-a, passando os obstáculos, vencendo-os, recuperando-nos, sobrepondo-nos a nós próprios”.
O bate chapas não entendeu, franziu o sobrolho, encolheu o lábio inferior e intrometeu-se de novo: “não sei o que se está a passar mas isso também não interessa. Acredito na menina, na sua voz, e chega”. Sara inclinou a cabeça, creio que ao mesmo tempo que os elogios a fortalecem a intimidam.
“Sinto o peso da responsabilidade face aos que contam comigo. Não me posso permitir ser incompetente. Tenho que trabalhar muito, cada vez mais, pois o público é uma força que me alenta mas que também me vigia”. Despedimo-nos com um abraço apertado, dois beijinhos à amiga, um até breve e já lá vão mais de dez anos.
A caminho do jornal, diz-me o fotógrafo, baixo nível: “até parecia que vocês se estavam a comer um ao outro com os olhos. O pior era a gaja que estava ao lado com vontade de te morder”.