Maestro Manuel Ivo Cruz: uma carreira de música e dedicação
Nascido em Lisboa a 18 de Maio de 1935, pode-se dizer asseguradamente que o Maestro Manuel Ivo Cruz contou com uma vida cheia de música e talento. Filho de um dos mais importantes maestros da história musical portuguesa, não tardou a seguir as pisadas do progenitor quando era ainda muito pequenino.
Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas, deu o seu primeiro concerto quando tinha apenas 19 anos e era ainda um estudante. Mais tarde, quando ganhou uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, formou-se com distinção como maestro pela Academia Mozart da Universidade de Salzburgo, na Áustria. Inicia-se assim uma carreira que promete ser promissora.
Regressado a Portugal, dirigiu a Orquestra Filarmónica de Lisboa, que o seu pai havia fundado nos anos 30, e colaborou nas produções operáticas do Teatro da Trindade. É aí que se torna director do Teatro Nacional de S. Carlos. Ao mudar-se para o Porto, foi director pedagógico do Conservatório da Maia, deu aulas de direcção de orquestra no Conservatório de Gaia e foi responsável pelo plano editorial da empresa “Renascimento Musical de Editores”.
Estas foram apenas algumas das actividades que exerceu ao longo da sua vida, além dos imensos convites que recebeu para dirigir formações nacionais e internacionais. Alguns anos antes de nos deixar, o Maestro Manuel Ivo Cruz concedeu-me uma entrevista na data em que se assinalava o seu 50.º aniversário de carreira. Neste post recordo essa conversa onde, na primeira pessoa, o Maestro recorda alguns dos momentos importantes da sua vida.
Entrevista com o Maestro Manuel Ivo Cruz
Goreti Teixeira (GT): Começava por lhe pedir para me falar um pouco sobre o “Renascimento Musical de Editores, Lda”.
Maestro Manuel Ivo Cruz (MMIC): O “Renascimento Musical” foi um movimento fundado pelo meu pai, em 1920/30, e que teve como colaboradores directos o maestro Sampaio Ribeiro, o professor Eduardo Libório e o Luís Freitas Branco. Este movimento destinava-se precisamente a fazer renascer a música antiga portuguesa que estava praticamente esquecida. Falava-se de Carlos Seixas, de Sousa Carvalho e outros compositores que hoje são importantíssimos e reconhecidos, mas que na altura eram apenas referidos nos dicionários e enciclopédia e que ninguém tocava. Não havia materiais e quando existiam partituras elas estavam nos arquivos. Com este movimento surgiram as primeiras edições musicais, como as obras de orquestra do Carlos Seixas, do Joaquim Casimiro e de muitos outros compositores do século XVIII e XIX. O meu pai, inclusivamente, fez a estreia de uma ópera portuguesa antiga, a primeira de Sousa Carvalho, intitulada “Amor Industrioso”.
Pela importância que este movimento teve no renascimento musical eu, juntamente, com o Rui Soares da Costa e outras pessoas amigas acabamos por retomá-lo e legalizá-lo há quatro anos. E fizemos isso, porque constatamos que havia pouca edição de música portuguesa. A partir daí temos tido uma actividade meritória, na medida em que, por exemplo, não havia uma única área de ópera portuguesa que os alunos pudessem comprar para estudar e cantar nos conservatórios e, neste momento, já foram editadas 12. Além das obras para piano, violoncelo, para contrabaixo e orquestra que já chegam às 30 edições. Apesar dos poucos apoios temos feito um esforço para divulgar as nossas composições antigas.
GT: É pelo seu envolvimento no projecto “Renascimento Musical” que inclui no seu repertório óperas de programação tradicional e compositores contemporâneos…
MMIC: Desde que comecei a ter uma actividade de maestro regular, a minha preocupação é quanto possível, a não ser quando são concertos temáticos, incluir no repertório obras de compositores portugueses sejam eles antigos, modernos, contemporâneos, românticos ou clássicos. Acho que se não formos nós a defender a nossa cultura, ninguém a defende. Essa é que é a verdade e na nossa cultura musical temos óptimos compositores que continuam a ser pouco divulgados, embora haja ultimamente um esforço grande por parte da Fundação Gulbenkien, que também editou obras e expandiu esses compositores. Contudo, acho que nós músicos activos temos a obrigação de introduzir pelo menos uma obra portuguesa nos programas, nos recitais ou nos concertos. Sempre que possível faço isso, a não ser quando me pedem exclusivamente um festival de Mozart ou de outros compositores. Mas em qualquer parte do mundo, num programa normal de concerto, incluo sempre uma obra e solistas portugueses e tenho reparodo que são obras muito bem aceites. Há quem me peça para deixar o material e acabo depois por verificar que as próprias orquestras ficaram com isso em arquivo e continuam a tocá-las. O poeta Carlos Queirós tem uma frase que define muito a nossa atitude: “português vivo é perjurativo”. É horrível mas é bastante verdade (risos).
GT: Por todos os países pelos quais já passou e no contacto que vai mantendo com o público, o maestro acha que os portugueses estão abertos a este género musical que muitos consideram ao alcance de uma minoria?
MMIC: Não. O problema aqui é outro. É um problema de chefias políticas que estão fora daquilo que é a tradição europeia. Espero que a entrada que estamos agora a fazer na Europa nos traga uma geração de políticos com uma visão mais europeia do que temos tido até agora. Repare no que se passa na maioria das câmaras nacionais: o que é que elas fazem pela música? Fazem um festival de Verão muito bonito, com caches muito elevados para figuras conhecidas nacionais ou estrangeiras, gastam esse dinheiro todo numa ou duas semanas, quando ele devia ser gasto durante um ano inteiro, com as próprias pessoas das localidades.
GT: São muitas as dificuldades que um maestro encontra para conseguir pôr todos os instrumentos a tocar em perfeita harmonia?
MMIC: Não. Os músicos são bons. A música é uma linguagem que todos nós dominámos e existe sempre um bom entendimento. Cada maestro tem as suas pequenas manias, pode ser um pouco mais rápido ou mais lento. Mas o importante é saber extrair da orquestra aquilo que eles estão habituados a tocar, harmonizando e compensando uma coisa com a outra. Não se pode chegar a uma qualquer orquestra profissional com uma obra que eles já tocaram mil vezes e querer impor uma abordagem completamente diferente. O que é preciso é encontrar uma linguagem comum que sirva para os dois e que enalteça a obra da melhor maneira. É para isso que servem os ensaios e não propriamente para ensinar a pôr os dedos no lugar certo.