Alanis Morissette, zangada e lúcida ao mesmo tempo?
“Do I stress you out”, canta Alanis em “All I really want”, no primeiro verso do seu álbum de 1995 todo platinado, um tal de Jagged Little Pill. O seu sentimento não é de raiva, ao contrário das inúmeras reviews que empurraram aquelas 12 ricas e complexas músicas para o reino do “ai que rainhas do drama”.
Reino fabuloso e mentiroso, esse. Ao contrário, Alanis provoca com discrição, com um travozito de ‘sacanice’, leve o suficiente que quase parece tímido e um bocadinho… ironic.
Quase parecia uma pergunta retórica. Afinal, Alanis Nadine Morissette (sempre tive esta dúvida dos dois Rs e Ss, algo incomum num nome real que também é de palco), então com 21 anos e que tinha andado pelos top of the pops lá da terrinha (Canadá), sabia perfeitamente que irritava quase toda a gente – no sentido em que as mulheres que andam de peito feito e confiantes sabem que… “irritam” (absurdo escrever isto hoje; era soup du jour em 1995).
Para as moças que já tinham tentado partir mercado no rock macho-cêntrico e, especificamente, no rejuvenescido (again… era uma vez em 1995) mercado do grunge, Alanis era uma diletante que cumpria este papel, rotulado de ‘infantil’ por osmose… para o mundo pop mais não era do que uma idiossincrasia, destilável num modelo básico de ninfomania, irracionalidade e bruxaria. Para muitos imbecis que por aí andam ela tinha demasiado sucesso para ser, sequer, boa. No sentido de boa artista musical, não levar para o campo botânico-javardolas se faz favor.
A ‘porrada’ que ela levou foi apenas natural, apesar de malta como Tori Amos, Sarah McLachlan e Sheryl Crow (acrescentaria aqui p.e. No Doubt e Hole, mais ou menos da mesma altura) já tivessem percorrido o caminho das compositoras femininas no panorama pop dos anos 90. Cada uma tinha que lutar uma e outra vez nas batalhas que não existiam para os homens, e, como umas vendiam e tocavam mais que outras, Alanis era a menos menos da minoria neste mini-campeonato de ‘Achas que sabes tocar e cantar rock sendo Moça’.
“Ouvir o novo album de Alanis é como ouvir a tua mana a insultar-te pela primeira vez”, escrevia o jornal local The Ottawa Citizen, no mesmo tom paternalista tão típico da maior parte das ‘resenhas’ que ela recebeu. Porque Alanis era nova e mulher, qualquer hipótese de ser levada a sério já era próxima de zero; porque a sua voz era um misto de nervos de fim de relação e ela cantava (muitas vezes com uma seriedade irrepreensível) cenas que ela tinha experienciado enquanto adolescente o que… a condenou, basicamente.
Mas Alanis sempre soube – misteriosamente, enquanto escrevia o álbum – exactamente o tipo de feedback que receberia. O seu dom de observação, que usou para processar todas as experiências traumáticas e irresponsáveis que viu enquanto ‘pita’ (usando linguagem dos anos 90, vá) que rapidamente passou a ser tratada como mulher, foi extremamente incisivo.
O que significa que, 25 anos depois, resta pouco para dizer sobre a forma como os críticos receberam Jagged. Não há nada que eles tenham dito que não seja cantado em Jagged.
“You must wonder why I’m relentless and all strung out”, ela diz, também em All I Really Want – antevendo-se aos olhos de outros depois de transformar-se no ouvinte: “I like to reel it in and then spit it out/ I’m frustrated by your apathy.” Este manifesto acaba com o pedido de justiça, pontuado por gemidos. É um pedido, um grito, que ela quis que fosse distante, paranóico e angustiante – tudo ao mesmo tempo – e a malta só tinha de comer e calar.
“I confessed my darkest deeds to an envious man / My brothers never went blind for what they did / But I may as well have,” ela canta em Forgiven, uma chanson sobre como é crescer com educação Católica, mas uma que poderia facilmente ser sobre o cliché de falar sobre sexo nas músicas de compositoras femininas.
Ela não cegou mas depois do monstruoso sucesso de You Oughta Know, Alanis foi catalogada como… ‘pega’ por causa de “Is she perverted like me / Would she go down on you in a theater?”, o que é manifestamente absurdo, típico e, se ninguém pensou/passou por estes lados na adolescência (anos 90 incluídos, mas não só) então que vá ouvir mas é André Indiana ou o raio que o/a parta…
“I don’t want to be adored for what I merely represent to you”, ela exclama em Not the Doctor, induzindo uma adoração sincera e discreta de outro chavão, esse universal e não sazonal, o das “mulheres de armas”.
Mesmo assim, apesar de Alanis ter previsto a porrada que ia levar, ela continuou a partir pedra. O sexismo, a injustiça e o ressentimento que provocou através de versos tão catchy quanto peculiares revelaram-se: era inevitável.
Só que consta que a dor verdadeira e a honestidade encontraram a sua audiência (dois anos mais tarde, em Portugal, sairia um dos álbums ‘pedra no charco’ do nosso portugalete, um tal de Cão, de uns gajos lá de cima, que alinhava também por esta cena mais íntima e tal) e foi um êxito explosivo, quase sem paralelo, que mostrou imensas mulheres que, tal como Nadine, sabiam bem como é que o mundo olhava para elas. E as menosprezava. Mulheres que, quando confrontadas com várias formas de estarem ‘erradas’, respondiam com um leque de sinceridade e vulnerabilidade – mesmo que isso as tornasse patetas.
Parafraseando a colunista Heather Havrilesky, “zangada é um nome que os homens maus chamam às mulheres que não os veem bem”. Talvez Alanis fosse ‘ressabiada’ mas o que ela queria era lucidez, o que foi determinante na forma dela ligar-se, intimamente, a milhões de pessoas.
Segue Alanis, primeira pessoa: “Acho que o que aconteceu foi que, sem saber, enquanto escrevia sobre a minha experiência, permiti que os ouvintes tivessem a sua [experiência], sem ter que pedir desculpas por nada, sem raiva ou tristeza ou depressão ou cenas mentais ou o que quer que seja”, disse a cantautora numa aparição pública recente, “acho que disse apenas… hei, não há problema nenhum em sermos humanos”.
Aqui devolvemos Alanis, num registo de paródia, uns anos mais tarde num filme de Kevin Smith. Humana ou deusa?…
Texto traduzido e adaptado da coluna de Natalie Weiner no tidal.com
O que eu acho de Jagged:
Um álbum do caraças, ponto final.
O que eu acho de Supposed:
Igualmente. Digam o que quiserem. É o Jagged ao contrário, menos ironic. Alanis tinha 25 anos quando isto saiu e a maturidade musical que levam algumas letras aqui é… de loucos. Stuff of collection!
O que eu acho dos hits:
Ironic, 4 (pizza para rádio; fixe mas enjoa depois de ouvires a 251ª vez)
All I Really Want, 4 (excessivamente 90s!)
No Pressure Over Cappuccino, 4.5 (um lado B que só mais tarde se deixou ouvir: puro, genuíno, tenso = Alanis vintage!)
You Oughta Know, 5 (é talvez a melhor expressão dela… toda a escola vocal, yodels e cenas, tudo aqui, partido nas letras que Natalie analisa lá atrás; não é a minha preferida mas anda lá perto!)
Head Over Heels, 4 (fixe mas há melhor)
That I Would Be Good, 5 (é tirar Bass e acrescentar Sorrow a Jagged; se Jagged foi overrated, este álbum levou cacetada porque todos queriam ir à party da menina e ela só lá tinha… facas e corda; agora Entendam a referência a Ornatos, que tão bem equilibrava fanfarronice com conversas profundas)
Baba, 5 (How much will this cost, guru /
“How much longer ’til you completely absolve me?”, entre outros versos, aqueles Ave Marias no fim… estrondosa música plena de significado e surpreendentemente actual; nota-se bem Glen Ballard, nos arranjos todos, a pintura perfeita para a caneta de Nadine).
Thank U, 4 (pizza radiofónica só que Marinara: falta-lhe a piadinha de Ironic mas fora isso tem tudo, incluindo um videoclip de puta madre, no?)
Em Portugal, teríamos em 97 o relâmpago de Ornatos e um ano depois Silence 4.
Mais ou menos equivalente a termos uma Alanis.
E depois André Indiana ou Paulo Gonzo ou o raio que os partam.
*o autor do texto original tem as suas opiniões, que não as mesmas do tradutor e revisor, em algumas frases e orações e cenas
*o autor Deste texto recusa-se a traçar um paralelo emocional entre Alanis e Ornatos e já se foi enforcar entretanto…
Saiamos ao som de Nadine…
“The moment I let go of it was the moment
I got more than I could handle
The moment I jumped off of it
Was the moment I touched down”
(Thank U, de 1998)