No dia 21 de outubro de 1967, foi transmitido ao vivo do teatro Paramount, do centro de São Paulo, pela emissora de televisão Record o III Festival da Música Popular Brasileira.
Naquela Noite (nota-se a letra maiúscula), artistas dos mais variados gêneros musicais daqueles tempos defenderam canções que ficariam eternizadas diante de um público que encontrou nas vaias e nos aplausos a liberdade de se expressar em tempos de ditadura militar.
Neste mês de outubro já se passam cinquenta anos daquela Noite que abrigou o evento que pode ser considerado o maior festival da MPB de todos os tempos. Já demos motivos suficientes para recordá-lo!
Nesta noite em 1967, havia Chico Buarque de Hollanda acompanhado do grupo MPB4; Gilberto Gil com uma canção pré-tropicália ao lado d’Os Mutantes; Roberto Carlos, o rei da jovem guarda, cantando um samba; Sérgio Ricardo quebrando violão e lançando-o contra o público após uma baita vaia; e Caetano Veloso cantando um rock ao lado do grupo argentino Os Bit Boys. Podemos dizer que aquela noite foi, musicalmente, diferente.
A galera que defendia a MPB era chamada de “linha-dura”. Elis Regina era a maior representante do movimento. Dentre as coisas que a MPB defendia era que música brasileira era somente aquela originalmente produzida no Brasil e que representasse o Brasil por ele mesmo, sem importar instrumentos, estilos e sonoridades vindas de fora.
O movimento da “linha-dura” sabia que havia um kit completo de cultura vindo atrás da guitarra elétrica e do rock and roll e já conseguia perceber os efeitos colaterais de uma norte-americanização por aqui. (cabe lembrar que a própria Elis se rendeu aos sons elétricos e passeou por outros terrenos).
Ainda nestes tempos de divisão entre os que se consideravam legítimos defensores da Música Popular Brasileira e os que eram considerados “alienados”, politicamente e culturalmente, Gilberto Gil subiu ao palco com o grupo Os Mutantes e ganhou o segundo lugar no festival com “Domingo no Parque”. A canção era bem “louca”, mas caiu na graça do público e deu vida para o Tropicalismo.
Festival Record 1967 – Gilberto Gil – Domingo no Parque
Caetano Veloso defendeu a icônica canção “Alegria, alegria” na companhia dos Bit Boys, levando um rock (com uma introdução de guitarras espetacular) para um festival onde o público aguardava ardentemente um samba! Levou vaias, é claro! Mas manteve o sorriso durante toda a apresentação, doando-se de corpo e alma para a música. O verso “caminhando contra o vento sem lenço e sem documento” falava sobre a falta de liberdade dos jovens que tinham que sair de casa com documento de identidade a fim de não ser levado preso pelas frequentes batidas policiais. Caminha contra o vento era caminhar contra o regime.
Caetano e Gil apresentaram ali o molde daquilo que foi seria chamado a partir deste festival de Tropicália. Havia cabelos grandes, roupas despojadas e misturas de ritmos brasileiros e internacionais. Eles também pretendiam trazer os temas da sua época para as canções como em “Alegria, alegria”. Isso custou aos dois um exílio na Europa em tempos de censura, medo e morte.
Caetano Veloso, Alegria Alegria, Uma noite em 67
Além da maior fragmentação da MPB, com Gil e Caetano mostrando que poderia fazer algo brasileiro com pandeiros, berimbau, tambores, mas também com guitarras e órgão elétrico, o público percebeu que não necessitavam ser passivos, eles tinham voz, garganta e palmas e poderiam interferir no resultado do Festival, que ia muito além da classificação final esperada.
Vejamos o poder do público que se percebeu “ativo” naquele Festival:
Roberto Carlos com o samba “Maria, carnaval e cinzas” foi o que mais vendeu em Compactos de Festival, no entanto, o público o recebeu com uma vaia tremenda. O público quis mostrar que aquele que mais vende não é necessariamente o melhor (ele ficou em 5º lugar). Enquanto isso, Roberto queria mostrar que conseguia fazer mais do que rock para a Jovem Guarda (ele tinha segurança disso, pois também cantava bolero, fox, samba-canção e bossa quando cantor noturno no Rio).
1967 – Roberto Carlos – Maria, Carnaval e Cinzas
Chico Buarque e MPB4 foram ovacionados pela plateia. “Roda viva” era uma das músicas queridinhas do público. Os ouvintes interpretaram a música e perceberam nela alguns elementos que poderiam estar aludindo ao que eles estavam vivendo no Brasil pós 64.
Festival Record 1967 – Roda Viva – Chico Buarque
O público mostrou-se bastante crítico quando o apresentador do Festival pede atenção para uma informação: Sérgio Ricardo mudou o arranjo de “Beto bom de bola”. O cantor até tentou, mas as vaias o impediram de cantar. Após tentar convencer o público de deixa-lo cantar, ficou bastante irritado com a intolerância ali encontrada e perdeu a cabeça. Quebrou o violão e o atirou para o público que se deliciou com a “vitória” da torcida. A TV o desclassificou do evento.
Sérgio Ricardo – Beto bom de bola – III Festival de MPB
O mesmo público raivoso que fez Sérgio Ricardo perder a cabeça aplaudiu enlouquecidamente Edu Lobo e Marília Medalha em “Ponteio”. O verso “quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar” ganhou o imaginário popular de forma avassaladora. Era uma música com letra bastante politizada que representava o que a juventude exausta da repressão desejava: liberdade e sossego. “Ponteio” ficou em 1º lugar, como era esperado por todos.
1967 – Marilia Medalha e Edu Lobo – Ponteio
Visamos aqui trazer um recorte do que ocorreu naquela noite em 1967.
Espero que a noite de 67 seja lembrada também nas suas bodas de ouro e que o material existente sobre o assunto fisgue a curiosidade das próximas gerações!