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Ana Moura e um disco que foi muito para além da saudade

Ana Moura

Ana Moura e um disco que foi muito para além da saudade

by Goreti Teixeira

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Para Além da Saudade foi lançado em 2007 e chegou às bancas acompanhado de um DVD com seis temas ao vivo. Ao leme do projeto estava a fadista Ana Moura, então no seu terceiro álbum de estúdio e ainda com um enorme desafio a superar. Nas palavras da própria, foi com Para Além da Saudade que a artista conseguiu ultrapassar, pela primeira vez, as barreiras da fisicalidade e expressar-se tão bem em estúdio como o fazia ao vivo.

O álbum foi bem-sucedido e deu continuidade ao percurso daquele que já era um talento consagrado do fado. Longe do estúdio desde 2004, ano de Aconteceu, Ana Moura regressava para um trabalho ambicioso, mas de continuidade.

Ao longo de 15 faixas, a fadista contou com a colaboração de vários nomes influentes, dos quais se destacam o amigo e produtor, Jorge Fernando, e os também letristas e compositores Fausto Bordalo Dias, a portuguesa de Moçambique Amélia Muge, o castelhano Patxi Andión e Tim Ties, saxofonista dos Rolling Stones. Quem também não ficou de fora foi Fernando Pessoa, cujo poema Vaga, no Azul Amplo Solta ganhou assim uma nova voz.

A propósito de Para Além do Fado, tive, em 2007, a oportunidade de entrevistar a própria Ana Moura. Ao longo desta conversa, a artista falou de novos desafios, das tão aclamadas novas vozes do fado e do reconhecimento que já tinha adquirido ao fim do terceiro disco.

Quer assistir a um concerto de Ana Moura? Clique no LINK para saber quando a artista atua!

Goreti Teixeira (GT): Para Além da Saudade vem dar continuidade aos dos dois anteriores trabalhos ou há algo que o distancie da linha que vem seguindo?

Ana Moura (AM): Na realidade é uma continuação daquilo que tenho vindo a apresentar até agora, mas a diferença reside no facto de ter estado mais à vontade em estúdio. O estúdio sempre foi aquele sítio onde não havia o calor do público e era difícil criar aquela atmosfera tão especial e importante quando se canta o fado. Actualmente sinto que já estou mais à vontade a trabalhar em estúdio, além de que não tive qualquer tipo de pressão em termos de tempo. Fui gravando e regravando até achar que o álbum estava como queria.

para-além-da-saudade-ana-mouraGT: Esse à vontade reflecte-se ao nível da interpretação?

AM: Sim, sem dúvida. As pessoas que me conheciam a cantar ao vivo diziam-me que nos CD’s existia uma diferença a esse nível. Neste novo álbum, acho que consigo transmitir muito mais aquilo que sou quando canto ao vivo.

GT: Os fados tradicionais convivem uma vez mais com o fado musicado. Em termos letras, conta com poema do Fausto, da Amélia Muge, do Fernando Pessoa, além do dueto que faz em castelhano com Patxi Andión. Como se desenvolveu esta escolha do repertório?

AM: Há três anos que não gravo e durante este tempo muita coisa aconteceu, nomeadamente, o privilégio de ter conhecido músicos de outras áreas. Em relação ao Fausto conheço-o de ouvir os discos. O meu pai, que também toca e canta, é um grande admirador do seu trabalho e cresci a ouvir as suas músicas. Há pouco tempo conheci-o pessoalmente e surgiu esta oportunidade de gravar um original de quem considero ser um dos maiores compositores da história da música portuguesa. Tenho também um tema da Amélia Muge que admiro bastante pela sua criatividade e a quem pedi uma música. Já sobre a participação do Patxi Andión fomos apresentados musicalmente por um amigo comum, o João Afonso, quando fui a Madrid ver um concerto da Sara Varas. Nessa altura, ele convidou-me a ir a sua casa e criou-se uma empatia imediata. O Patxi compôs-me um fado – e digo fado porque ele é um grande apreciador, conhece muito sobre a história do fado – que tem semelhanças com o Fado Menor e no qual ele colocou a letra do Fernando Pessoa. Acho que o resultado foi muito positivo e, por isso, lancei-lhe o desafio de fazer um dueto comigo no disco.

GT: Neste álbum destaca-se também a presença do saxofonista dos Rolling Stones, Tim Ries, que compôs Velho Anjo e que toca no tema A sós com a noite. Esta foi a maneira da Ana retribuir o convite que lhe foi feito, em 2006, para integrar o segundo volume dos The Rolling Stones Project? Na altura, ficou surpreendida com o convite?

AM: Não sou uma pessoa de criar metas, nem traçar objectivos. Tento usufruir ao máximo de tudo aquilo que a minha carreira me tem proporcionado. Soube do convite através dos meus managers holandeses que me telefonaram a dar a notícia. Na altura, os Rolling Stones estavam em tornée, passaram pelo Japão onde o meu disco tinha sido editado e o Tim Ries andava à procura de uma fadista. Além de ser saxofonista, ele também é o produtor da banda. É claro que fiquei muito feliz com o convite e aproveitamos a vinda deles ao Porto para gravarmos num estúdio. A partir daí criamos uma amizade muito grande, falamos regularmente, trocamos e-mails e já nos temos encontrado no estrangeiro. Aliás, houve uma altura em que nos encontrámos durante uma tornée nos EUA. Ficámos hospedados na mesma avenida, mas em hotéis diferentes como é óbvio [risos]. Lembro que eles tinham um concerto nessa noite e o Tim Ries ligou-me a dizer que tinha composto uma música a pensar na minha voz. Quando o concerto acabou fui com o meu produtor e co-produtor deste disco ter com ele ao hotel e sentado ao piano o Tim tocou a música. Imediatamente fiquei apaixonada por ela. O produtor começou logo a fazer arranjos de fado e depois achei interessante convidá-lo para tocar saxofone num outro tema. O Tim Ries é uma pessoa muito sensível, não só porque tem um respeito enorme pelo fado, mas como se nota na música que toca que não está a fazer solos disparatados. Ele vive a música com imensa paixão.

GT: Quando falou do produtor refere-se ao Jorge Fernando?

AM: Sim…

GT: Vocês conhecem-se desde o tempo em que a Ana cantava diariamente na casa de fado o Sr. Vinho. Como é trabalhar com ele? Esta cumplicidade que se criou dá-lhe mais segurança?

   

AM: É uma segurança enorme até porque, como disse, foi uma das primeiras pessoas que conheci quando comecei a cantar regularmente numa casa de fados. O Jorge tem acompanhado toda a minha evolução enquanto fadista e fazia todo o sentido que fosse uma vez mais o produtor, além de ter tocado viola. Aliás, Portugal tem de saber que o Jorge Fernando tem feito muito por esta nova geração. Ele é dos poetas mais cantados na história do fado e para além disso é compositor. A co-produção esteve a cargo do Custódio Castelo que também me acompanhou na guitarra portuguesa e do Filipe Larsen na viola-baixo.

GT: Normalmente quem a acompanha em palco?

AM: O trio que me acompanha é constituído pelo Zé Manel Neto (guitarra portuguesa), José Almiro Nunes (viola) e o Didi (baixo).

GT: Para quem não consegue fazer a distinção entre o fado tradicional (Fado Blanco, Fado da Azenha e o Fado Licas) e o fado musicado, o que é que os distingue? É a métrica?

AM: O fado tradicional são melodias que obedecem a determinadas métricas, ou seja, têm de ser quadras, quintilhas, sextilhas ou decassílabos. É uma melodia onde podemos colocar estas formas poéticas. Já o fado musicado consiste em fazer um poema e depois musicá-lo ou então temos uma melodia e escrevemos para ela, portanto, é uma melodia feita para um poema específico e, nesse sentido, temos mais liberdade. No fado tradicional podemos por letras diferentes no mesmo fado seguindo as métricas de que falei há pouco.

GT: A Ana também escreve ou prefere cantar os poemas que outros fazem para si?

AM: Sou uma pessoa muito introspectiva. A história do fado está repleta de poetas tão brilhantes que seria pretensioso da minha parte querer escrever algo. No entanto, não ponho de parte um dia sentir qualquer coisa e querer partilhar isso com o meu público. Será apenas aquilo que sinto, mas nunca na pretensão de querer ser poeta, porque não foi para isso que nasci.

GT: Considera que as condições primordiais de uma boa fadista residem na voz, na alma e na forma como improvisa?

AM: Acho que reside essencialmente na alma. É claro que aquilo que faz um músico ser melhor de que o outro é a reunião de um conjunto de particularidades como é a voz. Mas acho que o fado vive muito da alma e da interioridade dos fadistas. A improvisação também é importante, porque o fado sempre viveu muito do improviso e isso vai de encontro àquilo que falámos sobre os fados tradicionais. Quando nós colocamos uma letra nossa num fado tradicional, o fado passa a ser o nosso fado carris, por exemplo, e ao improvisarmos e ao estilarmos, como se diz na gíria do fado, ele passa a ser nosso.

GT: Quando a sua carreira espoletou e as portas do estrangeiro se começaram a abrir, alguma vez pensou que ao fim de três álbuns o reconhecimento fosse tão forte como nos é dado a perceber pelas salas onde tem actuado?

AM: Nunca pensei nisso. As coisas foram acontecendo muito naturalmente. Ainda não tinha o meu primeiro disco quando estava a cantar no Sr. Vinho e apareceram uns holandeses, que eu sabia que eram managers, que me ouviram e quiseram assinar um contrato comigo. A partir dai comecei a trabalhar lá fora e é por isso que a minha carreira passou muito mais pelo estrangeiro do que propriamente por Portugal. Mas tudo foi acontecendo passo a passo. Não é um percurso tão fácil como pode parecer, porque andar sempre a viajar não torna a vida um mar de rosas. Eu adoro Portugal. É o país onde cresci, onde tenho a minha família e os meus amigos e às vezes é difícil, porque acaba por ser um percurso um pouco solitário.

AM: Numa crónica assinada por Miguel Esteves Cardoso ele escreveu que “estamos a viver uma época de ouro no fado” de qual a Ana Moura e outros fadistas fazem parte. Na sua opinião, o fado tem conseguido sair de uma certa obscuridade em que se encontrava?

AM: Acredito que o fado já passou por grandes épocas de ouro. Acho é que agora há uma nova geração que canta as experiências que fazem parte das próprias vivências. Inconscientemente nós, os fadistas, temos influências daquilo que ouvimos hoje, assim como os músicos que nos acompanham. Adquiriram mais conhecimento musical e é normal que façam arranjos diferentes. No meu entender, a diferença reside essencialmente no facto de cantarmos aquilo que faz parte da nossa geração.


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