A vitória inédita de Portugal no Festival Eurovisão da Canção 2017 aconteceu como todos os fenómenos extraordinários. Sem aviso prévio, o mundo inteiro viu nascer uma estrela de dimensão universal através da interpretação de “Amar Pelos Dois”, uma música simples, singela, cantada com alma e muito coração por Salvador Sobral, um jovem cantor que até então era quase desconhecido. Mas que arrebatou o troféu com a pontuação máxima e o aplauso generalizado da crítica, público e júri.
Na manhã do dia 13 de Maio de 2017, em vez de estar a ver a Missa do Papa Francisco em Fátima, estive a ver televisão com a minha adorável filha que tem apenas 3 anos de idade. E ambos vimos um episódio da Princesa Sofia que me encantou sobremaneira.
Se neste momento acha que está a ler o texto errado continue a ler, porque sim vou falar do Salvador Sobral e da sua soberba vitória no Festival Eurovisão da Canção 2017 com a música “Amar Pelos Dois”, assinada pela sua irmã Luísa Sobral com arranjos de Luís Figueiredo.
Voltando ao episódio da Princesa Sofia, a história girava em torno de um concurso de jovens talentos musicais, que tinha no júri uma personagem que tocava Música Mágica, ou seja, executava melodias que hipnotizavam os ouvintes através de sons. Esse membro do júri era contudo um usurpador de talentos, que através de um feitiço conseguia roubar o talento de outras pessoas, melhorando as suas capacidades musicais dessa forma dissimulada.
E como realizava o feitiço? Basicamente, o membro do júri, que era na verdade um ladrão de talentos, tinha de convencer determinada personagem a tocar uma sequência de notas de forma perfeita, libertando assim a magia que transportava o talento musical inato de um corpo para o outro.
Enquanto assistia maravilhado a este episódio foi impossível não pensar como aquele enredo era uma boa metáfora para adequar ao mundo real da Música.
“Alguém que toca determinada canção de maneira sublime e que assim resgata o talento de outros?” Como melómano inveterado há décadas que faço todo o tipo de reflexões pessoais sobre os artistas e a inspiração que motiva a criação desta arte maravilhosa.
De repente, parecia que tinha encontrado uma explicação que fazia sentido para mim e deixei a minha mente vaguear um bocado. Inevitavelmente lembrei-me de Jeff Buckley, cujo talento supremo sempre me pareceu incorporar a sabedoria musical de outros grandes nomes do passado.
Mas posso citar outros exemplos, como Amy Winehouse ou Kurt Cobain, que ainda tão jovens demonstraram um génio musical impensável. E não foi sempre assim nas Artes e na vida em geral? Quem cria hoje não inspira sempre amanhã? Não andamos todos, melómanos, criadores, ouvintes, analistas, artistas, público, em círculos contínuos?
Esta ideia que o talento dos grandes nomes musicais do passado podem incorporar a qualquer momento nos novos artistas que surgem todos os dias é na verdade um resumo da História da Música.
Na noite do dia 13 de Maio de 2017 assisti em direto pela televisão, tal como mais de 250 milhões de pessoas em todo o Mundo, à vitória fulgurante de Salvador Sobral no Festival Eurovisão da Canção 2017. Confesso que até ao momento ainda não tinha dedicado atenção a este fenómeno de popularidade que atinge dimensões únicas para um cantor português.
Quando Salvador Sobral finalmente ganhou, fiquei com pele de galinha, e extremamente feliz porque Portugal venceu, mas sobretudo porque vencemos com uma canção que faz justiça ao enorme talento de todos os cantores, compositores e letristas do cancioneiro nacional que nunca obtiveram este tipo de reconhecimento mundial.
Sim, Amália Rodrigues, Mariza, Madredeus, Moonspell, são todos exemplos de artistas portugueses que obtiveram grande apreço por todo o Mundo. Mas apenas conseguiram reconhecimento após muitos e longos anos de trabalho e, atrevo-me a dizer, sem a unanimidade interna e externa que Salvador Sobral atingiu em escassos dias, horas, minutos.
É importante recordar que ele tinha editado o seu disco de estreia em 2016, chamado “Excuse Me”, que o público português na sua maioria nunca sequer ouviu!
O intérprete conseguiu a pontuação máxima – 758 pontos – na votação combinada dos júris nacionais e do público. Foi aliás a mais alta pontuação de sempre num Festival da Eurovisão e a primeira vez que Portugal através da RTP, participante no certame desde 1964, venceu o concurso que une as televisões públicas de toda a Europa.
O que aconteceu na final do Festival Eurovisão da Canção 2017 disputada por 26 países no Centro Internacional de Exposições de Kiev na Ucrânia, foi de tal escala que apenas um vasto conjunto de circunstâncias podem explicar o fenómeno.
A velocidade das redes sociais aliada à postura anti-vedeta transparente do cantor e um certo secretismo sobre uma doença cardíaca criaram uma espécie de aura que paira sobre Salvador Sobral. Mas na minha opinião esses factores apenas explicam uma parte: tudo somado, torna-se fácil constatar que o rastilho foi aceso pela… Música, pelo enorme poder transcendental que uma grande canção pode exercer sobre milhões de pessoas.
É curioso notar que “Amar Pelos Dois” deve alguma da sua magia a influências estrangeiras.
“Amar Pelos Dois” é de facto uma balada maravilhosa, sendo claro para mim que bebe das raízes melódicas da bossa nova, sem esquecer o talento inato de Luísa Sobral para compor música ternurenta, suave, que se aconchega no ouvido e no coração. A performance de Salvador Sobral é distinta, única e original, com uma abordagem vocal que remete facilmente para a personagem musical de Chet Baker.
Mas a minha mente continuava (e permanece) perplexa. “Como se justifica que tantos milhões de pessoas cantem e celebrem esta canção em português?”
Nesse instante lembrei-me do episódio matinal da Princesa Sofia e do personagem maléfico que roubava o talento de outros artistas.
Primeiro, pensei que a perfeição de Salvador Sobral na interpretação da música “Amar Pelos Dois” tinha ativado o feitiço que lhe permitiu a ele corporizar em apenas 3 minutos todos os talentos antecessores portugueses, resgatando do fundo da alma lusitana uma beleza musical inata que o mundo ignorava.
E depois, quando vi pessoas de tão diferentes origens e línguas cantarem em uníssono a letra de Luísa Sobral, senti que aquelas palavras, aquela mensagem, aquele desencontro amoroso, é um verdadeiro código secreto para abrir os corações das pessoas à música autêntica, genuína, pura, em detrimento da “música fast-food” que tão bem Salvador Sobral salientou no seu discurso de vitória.
Foi um momento glorioso para Salvador Sobral, mas também para a Música Portuguesa em geral, incluindo naturalmente muitos nomes da música nacional que também representaram Portugal neste evento, como por exemplo, Simone de Oliveira, Fernando Tordo, Carlos do Carmo, José Cid, Carlos Paião, Dulce Pontes ou Sara Tavares.
Afinal, “Amar Pelos Dois” é uma Música Mágica, que surgiu como uma aparição para iluminar a crença de todos aqueles que amam a Música. Que isto tudo tenha acontecido na noite do dia 13 de Maio de 2017 durante a celebração do Centenário das Aparições de Fátima, pertence ao domínio do Divino.
Salvador Sobral tornou-se uma estrela através da interpretação emocionada, frágil, delicada da música escrita pela irmã Luísa Sobral (considerada desde há vários anos e justamente uma das melhores compositoras portuguesas), com um tema totalmente diferente das restantes canções apresentadas no Festival Eurovisão da Canção 2017.
E foi realmente surpreendente que uma excelente canção, sem coreografia e artificialismos sonoros e visuais, cantada em português, tenha conquistado tanto reconhecimento internacional. E muitas vozes dizem agora que foi precisamente a sua simplicidade e autenticidade que emocionou os milhões de pessoas que sabem agora dizer o nome de Salvador Sobral.
Como observador atento do fenómeno musical há tantos anos, a reacção do povo português a esta vitória foi também em si mesmo um fenómeno. Nos tempos modernos estamos na verdade mais habituados a lamber as feridas das derrotas do que saborear as glórias das vitórias. E não me lembro de alguma vez isto acontecer fora da esfera do Mundo do Futebol.
Se alguém me tivesse dito que um dia a nação lusitana estaria unanimemente a apoiar um cantor que interpretou uma grande canção num Festival Eurovisão da Canção eu simplesmente não acreditaria!
Ainda mais contente fiquei quando vi e ouvi a conferência de imprensa que se seguiu à vitória em Kiev. Todas as declarações posteriores dos dois irmãos confirmaram que esta vitória tinha por detrás alguém com total noção do espaço mediático que estava a ocupar, e que resolveu usar esse espaço a favor da Música em geral (e não apenas da música portuguesa).
Não admira assim que personalidades tão diferentes quanto notórias, como Caetano Veloso, J. K. Rowling e Meryl Streep tenham anunciado o seu apoio, estima e apreço pelas qualidades evidenciadas por Salvador Sobral e pela canção “Amar Pelos Dois”. Mas é arrebatador saber que entrou na lista do Top 5 das músicas mais ouvidas do Spotify, estando na lista das músicas mais tocadas das plataformas de streaming de todo o universo!
Aqui no Blog Mundo de Músicas também vivemos como nossa esta vitória, desejando ardentemente que tudo isto sirva para que a Música regresse aos valores mais básicos e sentimentos universais que unem todos os seres humanos em redor de uma Arte tão bela.