Pedro Abrunhosa: viagens no tempo que nunca acabarão em silêncio
Pedro Abrunhosa. Associado à sua imagem saltam-nos à vista os seus óculos escuros. E foi precisamente assim que, por volta de 2002, o encontrei. Numa altura em que preparava o álbum Momento, estivemos à conversa. Nem eu, nem ele sabíamos a data de lançamento do novo disco e este ainda nem sequer tinha nome.
Com uma carreira sólida, o músico com sotaque do norte traçou um breve perfil do seu percurso até então. Ao longo da entrevista, falou do início da carreira como cantor e instrumentista, passando depois para as dificuldades vividas por quem escolhe ser músico em Portugal. Com o olhar analítico a que estamos habituados, falou da sua situação na altura e analisou o insucesso comercial do seu álbum anterior, Silêncio.
O amor pela cidade do Porto não ficou de fora, ao mesmo tempo que abordou a questão da carreira internacional. Da sua cidade para os palcos do mundo, Pedro Abrunhosa tinha passado por experiências únicas, tornando-se colega de Prince e pisando salas de espectáculo (literalmente) daqui até à China. A relação com o público foi outro tópico abordado, mas o melhor é passarmos mesmo à entrevista em si. Leia e recorde.
Gostava de assistir a um concerto de Pedro Abrunhosa ao vivo? Clique neste LINK para saber quando o artista volta aos palcos!
Goreti Teixeira (GT): Como surgiu a sua paixão pela música?
Pedro Abrunhosa (PA): Tinha mais ou menos 12 anos quando comecei a estudar música. Entrei na Escola de Música do Porto e comecei a extrapolar essa paixão para algo mais sério. A partir daí nunca mais parei. Aliás, ainda hoje estudo música. Iniciei a minha actividade profissional em 1975, com 15 anos a tocar pelas ruas europeias, enquanto tirava o curso no conservatório. Corri a Europa a tocar e já considero isto uma paixão. Paris, Londres, Viena de Áustria, Roma… tudo durante as férias.
GT: Desde altura em que começou a tocar, quais são as principais diferenças que sobressaem?
PA: Quando comecei tocava sobretudo em bares. Não existia o circuito profissional que temos hoje. Não havia bares equipados para receber os grupos como agora. Os bares e discotecas desempenham um papel importante como agentes culturais. Por exemplo, no interior do país não há auditórios nem salas de espectáculos. Mesmo as condições eram muito más. Não havia palcos, luz, sistema de som, transportes… Nós, os músicos, é que carregávamos e descarregávamos os instrumentos. Era muito complicado… Acho que abrimos caminho para os músicos de agora. Há custa de muita enxada fomos tirando as ervas daninhas do caminho.
GT: Agradam-lhe estes novos projectos que vão surgindo na música portuguesa?
PA: Uns sim outros não. A quantidade é sempre inimiga da qualidade. Acho que se estabeleceu em Portugal um parâmetro muito estranho, em que as pessoas se conveceram de que a música é um passaporte para a fama. As pessoas querem ser famosas a todo o custo e não trabalham para isso. As pessoas hoje têm muita pressa… com uma caixa de ritmos e um sintetizador faz-se um disco. É muito fácil editar-se no nosso país.
GT: É difícil ser-se músico em Portugal?
PA: Acho que é difícil ser-se músico em qualquer lado… tal como é difícil ser-se engenheiro ou médico. O problema está na qualidade. Um músico conta logo, à partida, com uma série de adversidades que as outras profissões não têm, nomeadamente assistência social, não somos uma profissão corporativa. Por outro lado, é fácil chegar à condição de músico, o mais difícil é escrever. Gostava que as pessoas começassem a querer ser famosas pelo que escreviam. O que se passa em Portugal é mais ou menos isto: sou manequim sou músico, sou advogado sou músico, trabalho numa discoteca sou músico. A música é uma coisa muito complicada e que deve ser tratada com mais dignidade.
GT: Sei que as letras e músicas são escritas por si. É difícil compor?
PA: Tudo serve para se compor uma música. A escrita é uma acto psicanalítico. Uma viagem ao subconsciente, ao interior. Como tal, uso a minha memória, os meus sentidos, o meu inconsciente para escrever. Trabalho muito, e às vezes quando estou a trabalhar fico inspirado.
GT: Quando sente essa inspiração, refugia-se em algum local?
PA: Trabalho sistematicamente. Tenho um estúdio e como todas as pessoas vou para o meu local de trabalho, sento-me ao piano, ligo as máquinas e começo a escrever. De vez em quando, ao fim de oito horas de trabalho, tenho algumas coisas interessantes e outras que são lixo. Não existe essa coisa romântica de que o artista vai no meio da rua, dá-lhe um “flash” e começa a escrever muito inspirado. Há é momentos de reclusão, de silêncio, de paz interior, mas que têm de ser exercitados constantemente.
GT: Porque resolveu dividir o seu trabalho entre Portugal e Inglaterra?
PA: Os meus discos são feitos metade em Portugal, metade em Inglaterra. Os álbuns Viagens e Silêncio foram feitos desta maneira. O Tempo foi gravado cá e nos EUA, nos estúdios do Prince, com a ajuda dos músicos e técnicos dele. Faço isto por uma questão de logística, de técnica porque as coisas complementam-se. Em Portugal encontro determinado tipo de coisas – os músicos, no estrangeiro encontro outros processos que se encaixam – técnicos e músicos.
GT: Como é que surgiu a oportunidade de tocar com os músicos de Prince?
PA: Como músico de jazz, nos anos 80, tocava com grandes nomes do panorama jazzístico internacional. Nessa altura, ao tocar contrabaixo com esses músicos desmistifiquei a distância que existia entre os músicos internacionais e nós. O álbum Viagens foi feito com os músicos de James Brown. Depois de ter regressado de uma grande viagem que fiz ao estrangeiro decidi contactar com eles e acabamos por trabalhar juntos. No segundo disco pensei que melhor do que James Brown só o Prince. Falei com ele, enviei-lhe as maquetes e a partir daí desenvolvemos uma boa relação, profissional e pessoal. Criaram-se laços muito fortes entre nós. Em relação ao concerto da Porto 2001, como era um espectáculo especial, eu os Bandemónio fomos acompanhados pelos músicos do Prince.
GT: Este concerto foi especial…?
PA: Foi um dos vários concertos emblemáticos da minha carreira. Mas, os espectáculos que faço e que me marcam realmente são os concertos que faço na minha própria cidade. É o retorno a casa.
GT: Como reage quando, por exemplo, dá um concerto na China?
PA: É estranho e reconfortante, mas dá uma vontade enorme de voltar para casa. Tenho tido concertos paradigmáticos, como por exemplo o de Itália, onde se nota claramente a barreira da língua, que acaba por ser ultrapassada pela música. A música que faço é muito física e mexe com o interior das pessoas. Quando o grupo começa a tocar, a plateia vibra seja em que língua for.
GT: E em relação ao público português?
PA: O público português é uma história de cumplicidade. É o meu País, onde recolho experiências e espalhado a minha música. Existe uma afinidade muito grande entre mim e o público. O público português é sempre o mais importante.
GT: O seu último álbum, Silêncio, não teve tanto sucesso como os anteriores, em termos comerciais. Tem algum receio de que com este novo trabalho possa acontecer o mesmo?
PA: O único receio que tenho é de não fazer um disco tão bom como os anteriores. Os meus álbuns têm sido uma sucessão de trabalhos, uns melhores do que os outros. O Silêncio foi o melhor dos três onde quis quebrar com a imagem estética e musical que tinha criado. Para nós, músicos, sucesso é fazermos 14 temas de grande qualidade. Como dizia Bob Dylan “eu não quero ficar petrificado nas minhas músicas”, não quero ficar paralisado no meu sucesso. Embora a música “Se eu fosse um dia o teu olhar” seja muito bonita, há algo mais para além disso. É preciso avançar… é preciso, quem sabe, matar esse tema. Não se pode parar ou estagnar, e nesse caso o último álbum é uma ruptura com o que é estabelecido com os outros discos. Quem faz arte tem de romper com as suas próprias fronteiras sob o risco de romper com o seu próprio público. Mas, não foi só isso que aconteceu. O Silêncio esbarrou em primeiro lugar no lixo que se estabeleceu em Portugal, e depois numa muralha de resistência. O sistema, finalmente, autoprotegeu-se contra as minhas palavras.
GT: Que diferenças é que podemos esperar deste novo álbum? Vai seguir a mesma linha de ruptura com o passado?
PA: Todos os álbuns rompem com alguma coisa. Este disco vai ser virado para dentro, com uma maior espiritualidade e no qual se vai procurar a beleza da palavra conciliada à música. É claro que vai ser uma disco de ruptura com os outros, mas mantendo a coerência da minha escrita.
GT: Sei também que participou no filme A Carta, de Manuel de Oliveira. Como é que descreve essa experiência?
PA: Foi uma surpresa e impressionante ver o Manoel de Oliveira, que na altura tinha 91 anos, a filmar os meus concertos. Participar num filme dele como actor principal foi uma experiência enriquecedora e muito louca, simultaneamente.
GT: Gostava de repetir?
PA: Esse tipo de experiências é irrepetível. Gostava se fosse algo tão inesperadamente louco, no sentido de imprevisível, como o que aconteceu com o Manoel.
GT: Que tipo de música ouve em casa?
PA: O meu compositor preferido é Wagner, mas também ouço Mozart, Beethoven, Bach… Massive Attack, Coldplay, Björk, Ben Harper, Portishead, Deftones… coisas que mostram sobretudo o que é a contemporaneidade. Existe ainda um grande espaço para o jazz e para a música portuguesa, nomeadamente Zeca Afonso, Fausto e Sérgio Godinho.
Tento estar a par do que se está a fazer em termos musicais. Aliás, para mim, só existem dois tipos de música: a boa e a má.
GT: Que Pedro é que podemos descobrir por detrás desses óculos escuros?
PA: Basicamente, o Pedro que está nos discos, e eles são o espelho do meu interior.
GT: Por último…
Um livro: de José Saramago
Uma música: O Principio do Fim do Sérgio Godinho
Um filme: Paris Texas de Wim Wenders
Um actor: Ed Harris
Uma actriz: Meg Ryan
Uma personalidade: Dom Manuel Martins
Uma cidade: Porto