O olhar melancólico e tímido de Chico César

Assim que olhei nos olhos de Chico César percebi-o envolvido numa imensa teia de tristeza, profunda melancolia, um jeito sem jeito de esconder a timidez, um singular lado doce. Percebi que ele – tal como eu – tinha um lado de bicho-do-mato, o que fez com que aceitasse pacificamente o isolamento a que se tinha proposto ao responder-me de forma invariavelmente esquiva e fugaz.

Cheguei de mansinho, não querendo perturbar-lhe a solidão, expressando admiração pelas suas letras politizadas e peculiares arranjos para guitarra. Nem assim o consegui demover da postura distanciada, aparência marcante com o cabelo a sair em repuxo da cabeça, “Cebolinha”, “Abacaxi”, “Beterraba”, “Repolho”, “Formiga Atómica” que lhe chamam com malícia ou carinho.

Não conseguindo perceber o porquê daquela mente sensível não me abrir espaço a uma aproximação mais íntima, comecei a ficar inquietado com as reservas. Ouvi-o dizer, sem deixar os seus olhos pousarem nos meus, que a profissão de jornalista o ensinou “a ter paciência, a saber esperar e a aprimorar a relação com as palavras”, contou que a sua descendência de negro, índio e branco se traduz “em algo interior que tem vindo a crescer e que me faz procurar parcerias junto de outros artistas numa perspectiva cada vez menos conservadora e mais transformadora”, mas, de si, rigorosamente nada.

Voltei a dizer-lhe, sincero, que gosto de o ouvir, que aprecio a forma como consegue transmitir fé sem dogma, mas continuava a vê-lo desgostoso, ainda mais quando falámos dos novos muros e da desnutrição de crianças, as interrogações no limite do desespero e da solidão, “que Deus é esse que deixa as pessoas serem dilaceradas pela impotência de quase nada poderem fazer?”. E eu, sentindo-o cada vez mais num quadro de asfixia.

Lembro-me de, tempos depois, num jantar com Lenine – que produziu o disco do colega e amigo da “De Uns Tempos Pra Cá” – ele me dizer que “mesmo connosco, músicos, o Chico é sempre assim, isolado por natureza, reservado demais”, lamentando que o seu enorme talento não tivesse correspondência na extroversão. Naquela noite do início de Fevereiro de 1999 em que nos encontrámos no Porto, recordo que ao ouvi-lo falar fui estranhamente remetido para o dia de tempestade em que ele nasceu, raios e trovoada, ele a respirar com dificuldade, a chorar copiosamente. Será por isso que é tão melancólico?

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