Sexta-feira à tarde, início de Verão, Nirvana, Nevermind…
Sempre me entristeceu o facto de Kurt Cobain ser mais vezes recordado como aquele artista maluco que se matou com um tiro na cabeça, do que pela música extraordinária que criou e interpretou. Mais de 20 anos depois da morte do líder dos Nirvana, acredito que a maioria dos jovens das últimas e próximas gerações nunca vão entender o impacto do surgimento dos Nirvana na cena musical internacional.
Contudo, não é fácil falar de Kurt Cobain, nem de Nevermind. Já tanta coisa se disse, já existem tantas análises e ensaios filosóficos acerca da importância dos Nirvana, que o mito é incomensuravelmente maior do que a génese verdadeira de um grande disco de rock. O que importa neste caso é que todas as pessoas que viveram a adolescência na década de 90 sabem que existe um antes e depois dos Nirvana. Aliás, todas as pessoas que se interessam por música ou fenómenos sociais sabem desta verdade. Pensando bem, toda a gente se apercebeu da chegada dos Nirvana: pais, professores, políticos, estilistas, realizadores de cinema, artistas de TV. Ninguém ficou indiferente.
Calma, não estou a dizer que toda a gente gostava dos Nirvana, até porque não era verdade, mas a grande maioria das pessoas sabia que esta banda de Seattle estava a criar um tumulto na vida de muitos jovens e adultos. Mas porquê? Porque razão Nevermind vendeu mais de 30 milhões de cópias e tornou-se um dos discos mais vendidos de todos os tempos?
Não sei a resposta, apenas posso falar em meu nome, mas o Nevermind tinha tanta força, energia e graciosidade que foi um enorme catalisador para a minha vida. E ainda é assim que gosto de recordar Kurt Cobain: como o vocalista poderoso da banda que mudou o rock mundial. Toda a história pessoal de Kurt Cobain é contada de forma brilhante no excelente documentário de 2015, intitulado Kurt Cobain: Montage Of Heck e assinado pelo realizador Brett Morgen. A filha de Kurt Cobain, Frances Bean Cobain, é a produtora executiva deste documentário totalmente autorizado e coproduzido pela Universal Pictures International Content Entertainment Group e pela HBO Documentary Films. Kurt Cobain: Montage of Heck está disponível na Amazon e também na .
Nirvana: uma experiência sónica
Lembro-me perfeitamente da primeira vez em que ouvi o disco. Apesar de ter sido lançado em Setembro de 1991, o álbum da capa com o bebé na piscina apenas chegou às minhas mãos meses depois, no final da Primavera de 1992.
Depois de semanas a ouvir falar dos Nirvana, que eram “isto e aquilo”, finalmente tive acesso ao Nevermind. E chegou-me através de uma cassete (sim, naquela época não havia Internet, nem telemóveis, nem mp3, e mesmo os CDs não estavam disponíveis assim com tanta facilidade), gravada provavelmente pelo meu grande amigo Pedro Salazar. Ou seja, nem sequer vi a capa antes de auscultar o disco, nem vi fotografias dos Nirvana, o que é uma maneira muito boa de ouvir uma banda pela primeira vez, fazendo valer a única coisa que interessa: a música.
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Ponto prévio: em 1992 eu era um jovem adolescente com 13 anos, mas o gosto pela música vinha de bastante longe e foi-me sobretudo transmitido pelos meus pais, através de audições intensas dos Queen, Rod Stewart, Tina Turner e outros artistas que dominaram os anos 80 (intercalados entre escutas mais soul, como Elvis, Otis Redding, Al Green e Percy Sledge).
Claro que no princípio dos anos 90 já ouvia com regularidade bandas rock influentes, como os Guns N’ Roses e Aerosmith, muito por influência do meu irmão (que já tinha dinheiro para comprar CDs). Mas para ser sincero ainda não tinha encontrado um grupo que me tocasse no âmago do espírito e provocasse uma mudança interior. Também não andava à procura disso, adorava (e ainda adoro) ouvir música, que para mim é como a comida: tenho de provar para saber se quero repetir.
Quando somos adolescentes a chegada das férias é um momento especial. Algumas semanas antes de ficar com liberdade diária durante 3 meses era habitual crescer dentro de mim uma ansiedade e excitação própria da idade. Eu, como qualquer adolescente normal, também ansiava pelas minhas férias de Verão, para ir à praia, fazer campismo e outras 30 mil coisas diferentes. Assim, numa sexta-feira à tarde de muito calor, no princípio do Verão de 1992, quase a acabar as aulas chatas do ano escolar (que em Portugal vai de Setembro até Junho), fiquei sozinho no meu quarto com a cassete do Nevermind e o meu rádio-gravador. Meti a cassete, pus as colunas no máximo e… senti que fui atropelado por uma locomotiva!
Nevermind: um comboio imparável
Ouvi tudo de uma só vez, sem paragens, porque a cassete tinha 90 minutos (e portanto 45 minutos de cada lado). E Nevermind tem apenas 42 minutos, distribuídos por 12 temas. Quando soaram os últimos acordes de Something in the Way já era uma pessoa diferente.
O que mais me surpreendeu foi a abordagem sónica da banda, que era totalmente diferente de qualquer coisa que eu já tinha ouvido. Não havia pomposidade no som que saía das colunas, nem “babies” e “I love you” nas letras, nem solos infindáveis cheios de truques, nem sequer virtuosismos vocais. Nunca tinha ouvido falar sequer dos Sonic Youth ou The Melvins, e pouco conhecia os The Pixies, portanto não tinha referências fortes de outras bandas que influenciaram bastante os Nirvana.
Para minha absoluta surpresa era tudo muito directo, enérgico e muito, muito forte: um som completamente novo para a minha alma. As músicas eram (e ainda são) óptimas, com riffs de guitarra simples e eficazes, com um baixo lúcido e uma bateria a desbundar durante todo o álbum. “Não acredito no que estou a ouvir!”, exclamei para mim próprio. Aquilo que escutava era verdadeiramente surpreendente: o poder da voz de Kurt Cobain era incrível, a potência vocal era misturada com uma maneira de cantar realmente simples, e era tudo muito… autêntico, natural, soava tudo muito honesto e original!
Mas não era só o vocalista que me impressionava enquanto ouvia estupefacto. Ainda hoje considero que o segundo álbum dos Nirvana nunca teria tido tanto sucesso, e por consequência não teriam transmitido um legado cultural tão influente, se Dave Grohl não fosse o homem das baquetas no disco Nevermind. Ele transforma aquelas músicas num comboio imparável!
Além da genialidade de Kurt Cobain, o actual líder dos Foo Fighters é totalmente co-responsável pelo poder inacreditável das músicas pouco complexas do disco. (Sem esquecer claro o trabalho do produtor Butch Vig, cuja importância entendi muitos anos depois). Recordo-me que o som da bateria tocada por Dave Grohl era tão alto, mas tão alto, que parecia que ele estava a tocar no meu quarto! Apeteceu-me imediatamente pegar nuns paus e começar a bater pela casa fora, tanta era a força, energia e dinâmica que sentia em cada uma das músicas. (Pouco tempo depois, comprei uma bateria e aprendi a tocar sozinho apenas ouvindo o Nevermind e vendo os vídeos dos Nirvana com Dave Grohl!!).
Nirvana e a década de 90
Para ser sincero, não entendi, nem decifrei, as letras das músicas na primeira audição. Mas isso pouco interessava, tudo na sonoridade dos Nirvana anunciava a chegada de novos tempos, novas mentalidades e uma nova compreensão do mundo. Não sendo um disco para adolescentes, era na verdade um álbum que retratava muitos dos dilemas e questões existenciais pelas quais os adolescentes passam numa determinada altura. Espelhava na minha modesta opinião as realidades paradoxais dos problemas e alegrias da adolescência.
Mas houve uma canção cuja letra ressoou de imediato. Come As You Are espelhava de algum modo um sentimento de frustração que senti várias vezes quando assistia às maldades próprias entre adolescentes. De alguma forma, essa canção sincronizou a minha crença interior que temos de aceitar todos como são e não tentar mudar as pessoas de acordo com os nossos padrões. Os Nirvana finalmente expressavam esse sentimento renovador que tanto marcou a década de 90.
Quando mais tarde entendi o que diziam as letras das músicas que tanto tinha adorado naquela sexta-feira, compreendi tudo. Também entendi que na história do rock os Nirvana não inventaram nada, apenas fizeram as coisas à sua maneira, numa nova interpretação de música rock, punk e pop. Então, porque razão este disco de canções curtas e directas teve um impacto tão forte em mim e em tantos milhões de pessoas?
No meu caso (e acredito que em muitas outras pessoas) porque estava mais próximo da minha realidade. Demorei alguns anos a entender que a vivência transmitida pelas músicas do Nevermind e os sentimentos agridoces que transmitiam eram mais palpáveis do que qualquer outro disco que eu tinha ouvido até então.
Na minha vida as situações descritas nas músicas das bandas de hard-rock (como, por exemplo, os Guns N’ Roses), não faziam sentido e apelavam a um mundo imaginário ou de fantasia que eu na verdade nunca iria vivenciar. Também os estereótipos da Motown eram agradáveis de ouvir, mas muito distantes da minha vida quotidiana.
As músicas dos Nirvana eram muito diferentes. Enquanto adolescente num bairro da cidade do Porto (a segunda maior de Portugal) eu era igual (na experiência social e comunitária) a milhões e milhões de adolescentes no mundo inteiro, seja em São Paulo, Nova Iorque ou Paris. Vivia num apartamento, numa cidade de cimento, com poucos espaços verdes, num bairro onde integrava um grupo de 30 ou 40 rapazes e raparigas da mesma idade e onde aconteciam coisas espectaculares e estranhas de vez em quando. Não existiam propriamente festas com drogas e mulheres em fato-de-banho lá no bairro (que eram temas comuns nas músicas sexistas e machistas das bandas de hard-rock, por exemplo).
Na verdade, estava a descobrir que a vida é muito boa de ser vivida, mas também tem coisas muito sinistras e que na verdade isto de viver não era só felicidade, alegria, harmonia e diversão. À minha volta eu também via dramas que não compreendia e que me chocavam, quer fosse a rapariga com Síndrome de Down que foi violada pelos operários da contrução civil, quer fosse o vizinho que enlouqueceu depois do divórcio e podava as árvores do bairro durante a madrugada ou mesmo a rapariga do 7º andar do prédio ao lado que se suicidou ao lançar-se da janela.
Nevermind como fronteira cultural
A minha vida era má ou triste? Não, nem por sombras, nem a música dos Nirvana apela a essa realidade derrotista e pessimista. Quando somos adolescentes e procuramos referências e modelos para seguir, tudo o que acontece à nossa volta tem impacto na formação da personalidade. Para o bem e para o mal. Canções como Smells Like Teen Spirit, Come as You Are, Lithium, In Bloom ou Polly estão muito mais próximas da vida de milhões de pessoas do que as músicas que foram destronadas dos tops pelos Nirvana (como os êxitos de Madonna ou Michael Jackson).
Quando um disco vende 30 milhões de cópias e influencia uma geração inteira, seja lá qual for o artista, essa obra cria um elo de ligação universal que repercute os sentimentos inatos do ser humano. Por outras palavras, Nevermind tornou-se um vínculo entre todos os que se sentiam outsiders, ou menos integrados com a comunidade ou normalidade.
O paradoxo é ainda maior porque sendo Nevermind o disco que levou o rock alternativo para o palco mainstream e abriu caminho para uma nova mentalidade no mundo da música, foi também o disco que catapultou Kurt Cobain para um beco sem saída. Sinceramente, pouco me interessa abordar aqui a personalidade de Kurt Cobain do ponto de vista do ilustre membro do clube dos 27 que entrou nos anais da História do Rock.
Todavia, desde o suicídio de Kurt Cobain considero que poucas vezes ele é retratado pelos seus méritos enquanto compositor, guitarrista e cantor. Toda a aura em torno do mito toldou (julgo eu) a visão que o mundo faz sobre a personagem e não sobre a pessoa. Contudo, o líder dos Nirvana não foi apenas um drogado, ou um pobre coitado que pouco aproveitou a vida.
Associo facilmente adjectivos como inteligente, sarcástico, irónico, humorístico, divertido e até sensível a Kurt Cobain e a a toda a obra dos Nirvana (que não é grande infelizmente). Mas esses mesmos termos também julgo que caracterizam toda a década de 90, que exprimiu novos valores em oposição ao luxo, ego-centrismo, sexismo e ostentação da indústria cultural dos anos 80 do Século XX.
Sem fazerem a mínima ideia como, nem porquê, os Nirvana delinearam uma fronteira cultural entre as duas décadas, apenas gravando um conjunto de canções realmente sensacional. Não sou eu que o digo. Esta é uma verdade por demais documentada. Mas, na minha opinião, os Nirvana enquanto artistas fizeram o que queriam, como gostavam e nada mais, porque o resto foram as pessoas que agiram: compraram 30 milhões de cópias, identificaram-se com esta nova mensagem, absorveram uma nova autenticidade na sua postura e seguiram o seu caminho transformando o mundo de acordo com as suas convicções.
Leia também aqui 10 músicas para relembrar o melhor de Kurt Cobain
Ótimo post, muito bom!
Muito obrigado, os NIRVANA continuam a unir pessoas em todo o Mundo! 🙂 Grande abraço
Que texto fenomenal
Nirvana foi realmente um “divisor de águas” entre o século 80 e o 90
Kurt e um símbolo dessa mudanças suas música eram os instrumentos
Lindo ler sobre sua visão/experiência com a banda, ainda mais pq viveu nessa época… Quando Nevermind foi lançado eu nem tinha nascido ainda, mas todos esses anos não impediram do furacão Nirvana chacoalhar minha vida, também aos 13 anos. Parabéns pelas palavras, fiquei muito feliz de ver alguém que reconhece a importância dessa banda para a história.