NOS Primavera Sound 2019: Erro de casting ou o triunfo da libelinha?
Em 2019, o NOS Primavera Sound deu entrada nos cuidados intensivos. E só não foi já necessário dar-lhe a extrema-unção, porque, ainda assim, a oitava edição do festival que chegou, se instalou, ganhou estatuto e granjeou a estima de um público fiel à matriz indie rock, e alternativas electrónicas, apresentou vários concertos dentro do espírito musical que o Porto acolheu de braços abertos há sete anos. Mas, ainda assim, soube a pouco!
No entanto, este pouco, juntamente com a não afirmação do prato principal que foi servido nesta edição 2019, mantém viva a esperança de que a recuperação total é possível e bastante viável.
Passo a explicar. Esta nortada que deu no cartaz, desvirtuando, de certa forma, a matriz com que o festival foi abraçado pelo Porto e ganhou fama, muita dela no estrangeiro, poderia ter sido fatal, mas ainda não foi desta. Os sintomas já tinham sido sentidos aqui e acolá noutras edições, mas desta vez, com a aposta forte em artistas e géneros que não se tocam com a matriz indie rock do festival, foi a revelação.
Porém, os números falam por si e a afluência de público foi bastante menor do que a de anos anteriores.
E, obviamente, J Balvin e Rosalía teriam que registar as maiores multidões, mas também era suposto sendo cabeças-de-cartaz! Mesmo assim, nenhum destes artistas conseguiu concentrar tanta gente no anfiteatro natural do Palco NOS como Nick Cave, na edição em 2018, apesar da impiedosa chuva que caiu durante todo o concerto.
Por outro lado, este foi o ano de quebra na adesão do público ao festival, que andava na ordem das 90 mil pessoas por edição.
Ora bem, o festival é grande q.b. e tem a capacidade e a qualidade organizativas necessárias para abarcar muitos géneros e estilos musicais, mas há cedências que não se devem fazer. Para este vosso devoto escriba, neste universo do rock, em toda a sua variedade e é muita, o reggaeton não cabe. Que me desculpem (ou não!) os amantes do género, mas não.
O R&B da Solange, o flamenco pós-moderno da Rosalía, o neo soul de Erykah Badu ou o rap de Danny Brown ou Tommy Cash, com boa-vontade, mais para uns do que para outros, até caberão no festival, mas não podem ser o prato principal. Poder até podem, como aconteceu em 2019, mas não devem, ou, então, estamos perante a metamorfose do Primavera Sound Porto.
Bem, afinal estamos na Primavera e a lagarta do rock bem pode transformar-se numa libelinha!
O festival até pode trilhar um novo rumo e quem o comanda tem todo o direito de o fazer, mas o evento deixará de ser o que era e, o que era, era muito bom. No entanto, continuo a pensar que foi apenas mais um erro de casting, tal como outros (mais pontuais) no passado e que este vosso escriba deu conta na altura. Miguel, que não a depressão de 2019, diz-vos alguma coisa?
Já agora, convenhamos, o Palco SEAT é digno, mas, ocupando o festival um espaço tão idílico como é o Parque da Cidade, colocá-lo no alcatrão não é o mais simpático… para com o rock!
Posto isto, falemos de música. Como foi dito, ainda assim houve bons concertos, não tantos como o desejável num festival com cerca de 70 bandas/artistas, mas alguns bastante bons. E como habitualmente, ainda deu para conhecer algumas coisas que mereciam ser descobertas.
E a melhor descoberta de todas, não pela música, mas pelo concerto foram mesmo os Viagra Boys, que actuaram no terceiro e derradeiro dia. Em estreia absoluta em palcos nacionais, o quinteto sueco deu, provavelmente, o concerto mais entusiasmante do festival.
Sebastian Murphy, o vocalista de tronco todo tatuado e muita vodka e cerveja no bucho, foi (um)a autêntica lagarta do rock (aquela que não quer virar libelinha), rastejando e rebolando em palco e debochando de tudo e de todos à sua volta… e não só. Convencido que estava em Barcelona, foi, tal como Erykah Badu, sempre aos «catalães tripeiros» (seja lá o que isso for) que se dirigiu.
Pós-punk de elevado quilate, onde o saxofone acaba por ter um papel central na sonoridade da banda. Aliás, os Viagra Boys foram uma das poucas excepções que levaram até ao Parque da Cidade o rock vibrante e acelerado, em que as guitarras esbaforidas e os ritmos apressados fazem as delícias do público indie-rock.
Neste registo sonoro, destaque ainda para os Fucked Up, no segundo dia, e o seu agressivo, rude, avassalador e inebriante punk hardcore.
Na abertura do concerto, o sexteto canadiano contou em palco com uma série de jovens músicos e cantores da Escola do Rock de Paredes de Coura que interpretaram «Queen of hearts», naquela que foi a melhor demonstração que o Primavera Sound teve de como não é preciso ir buscar estilos e géneros musicais da moda para atrair as novas gerações. Elas já estão em palco, quanto mais nas plateias!
Foi, provavelmente, o momento mais bonito de todo o festival, apesar da rudeza sonora. Mas, porra, é disso mesmo que o povo do rock gosta! De resto, foi sempre a abrir, enquanto no palco principal J Balvin fazia as delícias das Anas Malhoas desta vida!
Destacado o extraordinário concerto dos Viagra Boys, nota também muito elevada para os Interpol – seguramente, o nome maior do que tem sido a matriz do Primavera Sound Porto presente na edição 2019 – e, quais cruzados em defesa de uma sonoridade, estiveram ao mais alto nível.
O concerto, parecendo um pouco óbvio, foi uma delícia, preenchido, maioritariamente, por hinos que os Interpol criaram e que lhes arregimentou uma vasta legião de fãs.
«C’mere», «Evil», «Rest my Chemistry», «The Heinrich Maneuvers» ou «The Rover» foram alguns dos mimos que, por detrás de toda a austeridade que a banda exibe em palco, os Interpol ofertaram ao muito público que os escutou.
O rock está vivo e não há reggaeton que o possa beliscar, meus amigos!
Entre os grandes destaques desta edição 2019 do NOS Primavera Sound mais três nomes: Low, Jarvis Cocker e… Sons of Kemet XL.
Comecemos pelos ingleses liderados por Shabaka Hutchings e que levaram, no segundo dia, até ao Palco Pull&Bear o seu turbo-jazz, com laivos de grime, afrobeat e algum dub, cujo formato XL consiste em 4 (quatro) baterias, uma tuba, um saxofone e uma voz.
Diga-se que a presença e o grande concerto que os Sons of Kemet XL deram no Parque da Cidade é a prova viva de que outras sonoridades têm cabimento no Primavera Sound Porto sem que se desvirtue a matriz de um excelente festival.
Quase em simultâneo, no Palco Superbock, os Low davam uma aula sónica. O trio norte-americano, composto por Alan Sparhawk (voz e guitarra), Mimi Parker (bateria e voz) e Steve Garrington (baixo), espalhou toda a magia do seu som intrincado e atmosférico q.b., afirmando-se como um dos melhores momentos de todo o festival.
Na véspera, dia inaugural do Primavera Sound 2019, mister Jarvis Cocker foi igual a si próprio e deslumbrou. O ex-Pulp foi provocador e intenso, como sempre, e nem a bátega de água que a meio da actuação se abateu sobre o festival esfriou o ambiente. «Showman» de fino recorte, «Jarvis is…» um senhor!
Destaque ainda para Courtney Barnett, que musicalmente vagueia entre a menina bem-comportada e a rebelde capaz de virar tudo à sua volta, num misto de doçura e agressividade, de melodia e desvario. Foi mais uma injecção de rock, tão necessária perante o contexto que se vivia no palco principal, que cumpriu com as expectativas do público.
Nota ainda para, no primeiro dia, o belo concerto dos franco-britânicos Stereolab e para a refrescante presença das «garotas» Let’s Eat Grandma. No segundo dia, houve os incontornáveis Shellac, cuja invariável presença serve pelo menos para manter vivo o espírito rock do festival.
Neste segundo dia, o Palco NOS viveu um pouco da esquizofrenia que sempre faz o clima na Primavera, ou seja, depois de J Balvin foi a vez de James Blake. Ao contrário do popular jogo «encontre as diferenças», neste caso, é mais encontre semelhanças… se conseguir!
No terceiro e último dia de festividades musicais, nota para a prestação saborosa de Lucy Dacus, a irreverência punk dos australianos Amyl and The Sniffers, o hip-hop de intervenção de Kate Tempest e, ainda, para a electrónica experimental de Yves Tumor, que se apresentou com banda e foi mais um dos bons momentos da noite.
Por falar em electrónica, realce para a actuação dos Modeselektor, no Palco SEAT, e para os muitos deejays que no Palco Bits debitaram techno de fazer sair da toca até quem era um dedicado ouvinte destas batidas agrestes e pujantes há mais de duas décadas!
Outras coisas aconteceram e passaram pelos palcos do Primavera Sound, mas sem o dom da ubiquidade… fica difícil.
Por outro lado, uma vez mais o espaço estava brilhantemente preparado para receber os milhares que acorreram durante os três dias ao Parque da Cidade (a organização reporta 75 mil almas), com novidades e o reposicionamento de algumas áreas.
Em termos de estrutura e organização, o festival continua a ser um dos melhores, sempre de olho nas necessidades do público e na melhoria do seu conforto.
Já quanto aos J Balvins, às Rosalías e às Solanges desta vida… nem sei que diga. Aliás, penso que o melhor é não dizer mais nada mesmo e deixar isso para quem percebe daquilo.
Posto isto, impõe-se perguntar: o cartaz (principal) 2019 do NOS Primavera Sound foi um erro de casting ou foi a metamorfose do festival indie-rock do Porto e o, consequente, triunfo da libelinha?
Bem, para o ano se saberá e poderá ser confirmado entre os dias 11 e 13 de Junho, datas da edição 2020 do Primavera Sound Porto. Para já, sabemos que o cartaz terá os Pavement, que reunirão para dois concertos apenas, em Barcelona e no Porto. Agora, vamos esperar para ver quem os acompanha!
As excelentes fotografias presentes neste artigo são da autoria de Hugo Lima e Sofia Salgado Mota. O Mundo de Músicas agradece a ambos o talento, simpatia e generosidade!