Exuberante como só ele sabe ser, Ney Matogrosso é, já há muito tempo, uma das figuras mais proeminentes da música brasileira. A forma como se apresenta ao vivo e os temas icónicos que todos conhecemos valeram ao artista o reconhecimento da crítica e do público como uma das mais importantes vozes da sua geração. Por todo o espectáculo que lhe é associado, mas também pela assinatura vocal, Ney Matogrosso foi mesmo considerado pela revista Rolling Stone como a terceira melhor voz que o Brasil já conheceu, e o trigésimo melhor artista do seu país.
Em jeito de homenagem à figura controversa que transcende gerações, resolvi recordar uma entrevista que realizei ao próprio Ney Matogrosso, em meados de 2004, altura em que passou pelo Coliseu do Porto para apresentar Canto Em Qualquer Canto. Este DVD ao estilo “show de carreira” era, na data, o seu mais recente trabalho, resultado daquilo estava originalmente planeado para ser um programa de televisão. Ao contrário do expectável, foi neste DVD que Ney Matogrosso se mostrou sem maquilhagens exageradas, nem grandes adereços para revelar uma versão acústica que, até então, não era seu apanágio.
Surpreendente, Canto Em Qualquer Canto revisitou temas antigos do cantor, vestindo-os com novos arranjos e sonoridades mais calmas. À margem da conversa, não podia ficar o próprio estilo exuberante de Ney Matogrosso, nem tampouco a sua força cultural que moveu consciências e deu voz a causas como a liberdade sexual. Na altura com 65 anos – segundo o próprio”bem vividos” – o artista falou de mentalidades, de crescimento e de evolução. Vale a pena reler.
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Goreti Teixeira (GT): Como define Canto em qualquer Canto?
Ney Matogrosso (NM): Diria que o espectáculo é um recital pop. Tenho liberdade para me expressar o que não acontece num recital mais formal. É um recital muito sóbrio.
NM: A actuação tem de ser coerente com o que canto. Embora tenha liberdade não posso esquecer que esta tem de ser mais contida também pelo formato acústico do espectáculo.
GT: Normalmente grava um disco, apresenta-o em espectáculos e quando decide entrar num outro projecto, o anterior fica para trás. No entanto, em Canto em qualquer Canto faz uma revisitação ao seu repertório, porquê?
NM: Uma revisitação a muitas músicas. Aliás, esta é a primeira vez que o faço e acaba por marcar uma diferença na minha carreira. Quis ver como é que as músicas funcionavam tocadas com quatro violões. A verdade é que as músicas ficaram diferentes, também porque tiveram novos arranjos, bem como a própria maneira de as interpretar.
GT: É acompanhado pelo português Pedro Jóia (violão e alaúde), Ricardo Silveira (guitarra), Marcello Gonçalves (violão de sete cordas) e Zé Paulo Becker. Qual a razão para ter escolhido estes músicos e não outros para estarem consigo em palco?
NM: Sempre trabalhei com músicos bons. Faço questão de procurar músicos com carreira e com discos gravados, o que para muita gente é estranho porque acham que vão ter de dividir o palco. Eu acho que quanto melhor for o músico, melhor eu estou a ser apresentado. No início seria só um programa para televisão, com a minha voz e um violão. Perguntei se não queriam fazer com quatro violões e então juntámos estes músicos. O Pedro Jóia estava a fazer comigo o espectáculo Vagabundo, já tinha trabalhado também com o Ricardo e o Marcello, mas não conhecia Zé Paulo Becker. Eles sugeriram o nome dele e eu aceitei.
GT: Também a roupa que usa em palco e o próprio cenário não são tão extravagantes…
NM: Tem um figurino menos extravagante, ou melhor, extravagante na medida certa. Não saio na rua com a roupa que uso, porque é um figurino para palco. Além disso, tem também uma luz que foi mais pensada. A verdade é que quando me apresentei nesse programa de televisão não havia nada e foi aqui, no Porto, que descobri que podia ser um espectáculo de carreira. Fui convidado para actuar na Casa da Música, para mais de 60 pessoas, e quando voltámos ao Brasil decidi ampliar o show introduzindo mais músicas, mudei o figurino, a luz e tornou-se num show de carreira. Estamos a apresentá-lo há um ano e meio, com grande sucesso.
GT: Ao longo de mais de 30 anos de carreira sempre se assumiu como um provocador, mas de consciências. Tem conseguido fazê-lo?
NM: Acredito que sim. Acredito que agito a consciência das pessoas. Hoje percebe que o Brasil está diferente, não só em termos de comportamento como de mentalidade. Também é verdade que esta maior abertura traz alguns exageros, mas acho que faz parte do processo. Sempre fiz questão de defender a minha diferença e, por isso, exijo respeito e espaço. O direito de me expressar com independência e não falo só em termos sexuais.
GT: Mas essa diferença trouxe-lhe alguns dissabores?
NM: Não. Aliás, no começo com Secos e Molhados foi mais complicado, mas depois deixou de ser. E deixou, porque a maquilhagem que eu usava servia para me defender e para ter vida privada. A dada altura percebi que já não precisava de me esconder atrás da maquilhagem, porque recebia do público e das pessoas que ia encontrando na rua uma atitude muito positiva e simpática. Percebi, então, que já não precisava de ser agressivo e que estava a entrar numa sintonia harmoniosa.
GT: Fora do palco o Ney Matogrosso parece ser uma pessoa tímida…
NM: Não diria tímido, mas sim recatado. A minha manifestação artística é espontânea, mas fora do palco não tenho a necessidade de chamar a atenção. Prefiro observar do que ser observado. Em palco as coisas acontecem de maneira diferente. O público pagou para me ouvir cantar e aí libero tudo. É algo inconsciente, porque na hora em que piso o palco parece que há uma chave que abre qualquer coisa cá dentro que se liberta. No início da minha carreira parecia que recebia um santo e cheguei mesmo a pensar que tinha dupla personalidade. Hoje sei do que se trata, sei que faz parte de mim e já não é tão inconsciente.
GT: Também sempre se afirmou como uma pessoa sem preconceitos…
NM: Penso que as pessoas devem fazer tudo aquilo que queiram desde que se sintam bem e que não prejudiquem ninguém. Sempre pensei assim e acho que qualquer preconceito é um atraso e uma ignorância.
GT: Os seus 65 anos têm sido bem vividos?
NM: Sim, muito bem vividos.
GT: E ainda há alguma coisa que queira fazer?
NM: Gostava de fazer outras coisas, nomeadamente, teatro. Antes de ser cantor fui actor, mas acabei por não me realizar porque a batalha é muito difícil. É como tirar leite da pedra. Contudo, enquanto cantor coloco essa carga de actor. O problema é que o teatro é tão absorvente quanto a música, ao contrário do cinema, onde em dois/três meses você resolve o assunto. A verdade é que também não estou suficientemente aliciado para abraçar um projecto teatral e largar a música.
GT: O prazer de cantar ainda continua o mesmo?
NM: Exactamente o mesmo. Em termos artísticos o que me interessa é subir ao palco e apresentar-me. O disco é só um pretexto.
GT: Quando é que acha que vai pousar o microfone?
NM: Só quando não puder mais. Só quando o tempo me impedir. Só quando não tiver energia física.
GT: De que forma gostava de ficar lembrado?
NM: Como uma pessoa que lutou contra a injustiça e os preconceitos do mundo. Como uma pessoa de mentalidade aberta, que ama a vida e a natureza. Sou uma pessoa apaixonada pela natureza, preciso desse contacto e acho que o grande erro humano foi quando se começou a dessacralizar a natureza.