A vontade comum de Luís Varatojo e João Aguardela de continuarem a parceria iniciada com o projecto A Linha da Frente fez nascer, em 2004, um grupo novo a que deram o nome A Naifa. Deste quarteto fazia ainda parte Vasco Vaz, que assumia o controlo da bateria e, Maria Antónia Mendes, que deu voz a muitos das faixas da banda.
Nos anos que se seguiram, sofreu alguns reajustes: Vasco Vaz passou a bateria a Samuel Palitos enquanto Sandra Baptista entrou para substituir João Aguardela no baixo. Ainda assim, com um estilo que paira entre o fado e o pop-rock, a banda manteve-se ativa e lançou, até 2013, cinco álbuns, para além dos concertos que continuam a dar em Portugal e além-fronteiras.
Em 2004, tive a oportunidade de entrevistar Luís Varatojo, aquando do lançamento do primeiro álbum da banda . Mais de dez anos depois, volto a publicar a entrevista que fiz a um dos fundadores d’A Naifa. Esta conversa foca-se sobre a fundação da banda, a inspiração para o álbum de arranque e até mesmo uma explicação para a escolha do nome.
Goreti Teixeira (GT): Quando é que A Naifa começou a ganhar forma?
Luís Varatojo (LV): Eu e o João Aguardela já tínhamos trabalhado juntos num projecto anterior que se chamava A Linha da Frente. Foi um projecto pontual que durou cerca de dois anos, onde colaboravam também outros músicos e desse encontro ficou uma vontade comum de trabalharmos em conjunto. Depois de extinta A Linha da Frente continuamos a fazer música e foi daí que surgiu . Há uma coisa que já vem do projecto anterior e que tem a ver com a parte lírica que era assegurada por poemas de poetas portugueses, como Fernando Pessoa ou Alexandre O’Neil. Agora a diferença é que decidimos voluntariamente procurar poetas contemporâneos e não clássicos. Decidimos escolher poetas novos, alguns que já conhecíamos e outros que acabamos por conhecer nessa procura. Tivemos uma vontade de fazer qualquer que em termos musicais fosse bastante mais português.
GT: Por isso reuniram a guitarra portuguesa a uma batida mais electrónica?
LV: Acaba por ser uma coisa natural. A música que nós ouvimos desde crianças e aquela que depois nos influenciou a fazer o nosso trabalho acaba por se reflectir neste trabalho. Da minha parte a novidade foi ter trocado a guitarra eléctrica pela guitarra portuguesa, porque na altura em que começamos a trabalhar nas músicas para este disco andava interessado em conhecer o instrumento e comprei-o. Tornou-se um elemento fundamental e acabei por fazer a minha parte da composição sempre com a guitarra portuguesa. Depois descobrimos que ela ligava bem com o baixo eléctrico e a bateria que resultou nesta sonoridade.
GT: Vocês também falam muito em preservar a identidade e procurar fazer algo que esteja fora dos projectos musicais pré-formatados. Podemos entender este álbum [] como um contributo para que a identidade cultural portuguesa não se dilua?
LV: Acho que sim, mas também é a nossa única forma de criar e de estar na vida. Tentar que o nosso trabalho seja o espelho daquilo que nós somos, tendo em conta aquilo que temos como passado.
GT: No final da introdução percebemos que não estamos perante um disco de fado, onde se vai falar de tristeza, saudade ou infortúnio. São letras muito urbanas e que falam do quotidiano. A escolha destas letras foi um risco calculado?
LV: Em primeiro lugar o disco não é de fado e nem nós somos músicos de fado. É um disco que tem uma matriz musical bastante portuguesa, em parte relacionada com o fado, porque neste momento acaba por ser aquela que mais simboliza a música portuguesa, apesar de existirem outras coisas tradicionais. Não pretendíamos fazer um disco de fado e não o fizemos. Eu chamo-lhe um disco de música portuguesa contemporânea ou um disco de pop português. O facto de termos ido à procura de poetas novos foi intencional. Eu já tinha livros do José Luís Peixoto e do João da Adília Lopes. Entretanto, fomos procurar mais às livrarias, retiramos poemas que nos diziam alguma coisa e acabamos por constatar que pessoas da nossa geração estão a escrever coisas que nos dizem bastante e que são o reflexo da nossa sociedade.
GT: Reparei que por baixo de cada letra [no booklet do álbum] recomendam a leitura de um livro, não é uma prática normal?
LV: Foi um processo mais ou menos natural. À medida que o trabalho se ia desenvolvendo iam surgindo as ideias. Quando os gráficos estavam a fazer a capa e vimos as letras impressas nas maquetas, achamos que podíamos fazer uma sugestão de leitura. Como há tão pouca gente a ler em Portugal também se dá mais um incentivo através da música.
GT: Quando pensaram em juntar uma voz ao grupo, a Maria Antónia Mendes foi desde logo a vossa primeira opção?
LV: Nós fizemos algumas audições no estúdio e a Maria Antónia foi a terceira pessoa a aparecer. Fizemos uma ou duas sessões e ela acabou por marcar a diferença. Logo de início percebemos que ela fazia uma coisa que hoje em dia é raro que é cantar em português e dar expressão às palavras. Não tem vícios de música anglo-saxónica, consegue dar o peso que as palavras têm sem cair em exageros e, acima de tudo, consegue cantar sobre um instrumental que não é muito habitual.
GT: A Naifa é um grupo ou é um projecto?
LV: É um grupo. Um conjunto musical. Uma banda. Como em todas as áreas, quando eu e o João partimos para este disco, havia um projecto, um esboço do que queríamos fazer. A partir do momento em que se juntaram os quatro elementos, começamos a fazer os ensaios e a tocar ao vivo, o projecto ganhou corpo. é uma banda orgânica.
GT: Na altura em que estavam a conceber o disco pensaram que a aceitação pudesse ser tão positiva como está a ser?
LV: Quando criamos alguma coisa há sempre essa dúvida de saber se o trabalho será aceite ou não. Mas o trabalho é honesto. Tem a nossa alma e a partir daí sempre tivemos a convicção de que haveriam pessoas que se iam sintonizar connosco e que iam sentir aquilo que nós sentimos quando fizemos o disco. Apesar do panorama musical estar muito negro, acreditamos que ainda há pessoas que se vão interessar por esta nova forma de fazer música portuguesa.
GT: Podemos entender a palavra Naifa como um corte ao que tem vindo a ser feito na música portuguesa ou é simplesmente uma palavra?
LV: Pode ter duplas ou triplas leituras dependendo de cada pessoa. Quando nos surgiu a palavra naifa foi por acharmos que era uma palavra óptima para definir o projecto mesmo em termos de fonética e também porque era uma palavra que caiu muito em desuso. Achamos que seria ideal recuperar mais esta referência. A própria capa do disco é uma pintura do Amadeu de Sousa Cardoso, um dos maiores pintores portugueses reconhecido no estrangeiro, mas também pouco divulgado em Portugal. O facto de termos ido buscar esta pintura e esta palavra está relacionado com a necessidade de ir recuperar certos valores.
GT: A frase de Fernando Pessoa que diz: «Primeiro estranha-se, depois entranha-se» aplica-se a este álbum?
LV: É possível (risos). Por acaso também tivemos essa sensação quando estamos a desenvolver o disco, porque de repente demos por nós a fazer música com um naipe de instrumentos e um formato que nunca tinha sido apresentado. Primeiro estranhamos aquela sonoridade e depois trabalhamos para que ela se tornasse musical e agradável. Depois do disco acabado e mesmo hoje ainda temos muito prazer em ouvir o disco.