Quando os Simentera, de Cabo Verde, entraram em cena naquela noite de 24 de Julho de 2004, o palco do Festival Músicas do Mundo de Sines afigurava-se possuído, e eu, qual paira raios, absorvendo cada flechada de desvario até ao tutano enquanto fotografava ali mesmo em cima do palco, privilégio de poucos e por pouco tempo. Eis quando reparo que Lela Violão dedilhava a guitarra com o dedo indicador esquerdo em riste, hirto, enquanto os outros quatro duplicavam a velocidade como que para atenuar a falta.
Passei o resto do concerto focado naquela mão, atónito com a forma como aquele músico de eleição extraía os sons da sua guitarra, não descansando enquanto não me dirigi até ele para o felicitar pela habilidade, para saber algo mais daquele homem de áurea mística.
Acabadas as mornas, coladeras, mazurcas e funanás, fui até aos camarins – louvado festival que permite que os jornalistas possam circular pelas bastidores – para logo me dirigir a Manuel Tomás da Cruz, o Lela Violão, um dos músicos mais talentosos do panorama da world music, consagrado com os Velha Guarda.
Feitas as apresentações, “senhor Lela, sou jornalista do Correio da Manhã, o jornal que mais vende em Portugal, e esta é Lela, minha esposa, que grande concerto, como é possível tocar como toca, muitos parabéns”, eu todo excitado por estar diante de um vulto pouco conhecido mas possuidor de um talento que me tinha deixado visivelmente fascinado.
Palavra puxa palavra, então porque é que só toca com nove dedos, “porque aos 28 anos, no seguimento de uma queda e de uma operação mal feita, perdi os movimentos do indicador esquerdo, pelo que fui obrigado a aprender a tocar com os restantes, só que com mais rapidez”, respondeu-me com toda a calma do mundo, como quem se espraia aos raios do senhor reis dos dias numa praia do Mindelo.
Contou-nos que tinha 74 anos e a quarta classe, que foi criado no meio dos animais, que desde os oito anos que tocava guitarra e cavaquinho, que tem 30 filhos. Trinta filhos? E todos da mesma mulher? “Não, isso não. Tenho 30 filhos mas de 11 mulheres diferentes”.
Quantas mulheres?
“Tenho 11 mulheres distribuídas por cinco das nove ilhas do arquipélago. O mais velho tem 47 anos e a mais nova nasceu há apenas dois. E com qual das 11 mulheres é que é casado? “Casado? Nem pensar. Se fosse casado faria a mulher passar muito mal. Coitada. Será que se um dia desse esse passo ela iria aceitar as outras? É claro que não. Por isso é melhor ter 11 mulheres, 30 filhos e não ser casado. Não acha?”